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Frankenstein: um mergulho no fazer científico contemporâneoLeitura em 10 minutos

Cena da série Penny Dreadful (John Logan, 2014-2016) em que Victor Frankenstein trabalha sobre um corpo.

Um jovem inclinado sobre uma maca, analisando um cadáver com bastante zelo: é assim que Victor Frankenstein é apresentado na série televisiva Penny Dreadful, lançada em 2014 e incialmente veiculada nos streamings Showtime – no caso dos Estados Unidos – e Sky – na Grã-Bretanha e atualmente pertencente ao catálogo da Amazon Prime Video. Desde a primeira cena em que aparece, a função do jovem fascinado pela ciência é definida: ele é encarregado de auxiliar a desvendar os mistérios de corpos aberrantes que perturbam a ordem de Londres no século XIX.

Penny Dreadful é um dos exemplos potentes de como o clássico gótico de Mary Shelley é reapropriado pela cultura do entretenimento, o que atesta o imenso fenômeno que o enredo de Frankenstein ou o Prometeu moderno continua produzindo ao longo dos séculos. A figura do cientista que desafia as leis da natureza é velha conhecida do imaginário coletivo ocidental, bem como a sua criatura. Mediante à tamanha resistência aos efeitos do tempo, é inevitável lançar as seguintes perguntas: o que essa história tem que a faz permanecer tão viva? Em que consiste esse sucesso?

Como tentativa de responder a questões tão complexas, é fundamental se debruçar sobre Victor Frankenstein, o cientista criador, e as motivações sobre o seu ato descomedido. Afinal de contas, ter dado vida a um ser aberrante é o que contribui para a sua complexidade. Frankenstein não é alguém que apenas imagina: ele transforma sonho em ação. Por essa razão, ele vai ser o foco principal da investigação para se entender a contemporaneidade da obra de Mary Shelley. A análise desse personagem contribui, portanto, para a chave de leitura de encará-lo como metáfora para o panorama de novas formas de geração de vida.

Victor Frankenstein – o cientista criador

Ao nos depararmos com Victor Frankenstein, algumas características saltam aos olhos, que certamente contribuem para o seu ato descomedido de dar vida a um monstro. Ele pertence a uma família de grande prestígio político em Genebra, como o seguinte trecho demonstra:

De berço sou genebrino, e minha família é uma das mais proeminentes daquela república. Há anos meus ancestrais figuram no Parlamento local e no judiciário; meu pai ocupou várias funções públicas, nas quais, honradamente, construiu uma reputação. Era respeitado por todos que o conheciam em virtude de sua integridade e de sua incansável dedicação à coisa pública (Shelley, 2015, p. 99).

Ser membro de uma classe abastada é o que vai conferir a Frankenstein um fácil acesso à cultura letrada e vai lhe proporcionar a chance de frequentar a Universidade de Ingolstadt. Sem esse conhecimento formal, ele não teria a técnica necessária para o seu intento de dar vida a um ser humano outro.

Outra característica relevante sobre Frankenstein é o seu temperamento. O próprio personagem é quem faz a avaliação de si mesmo, quando diz que suas paixões às vezes o levavam a ter “atitudes veementes” (Shelley, 2015, p. 106-107). Porém, ao mesmo tempo em que as paixões resultavam em tais atitudes, elas foram se transformando em um dos aspectos essenciais de Frankenstein, que é o seu instinto curioso de aprendiz:

[…] mas por força de alguma lei de personalidade esses arroubos se transformaram não em obsessões infantis, mas num ávido desejo de aprender, porém não aprender todas as coisas indiscriminadamente. […] O que eu desejava aprender eram os mistérios do céu e da terra […] (Shelley, 2015, p.106-107, grifo meu).

Fica claro, então, que a intensidade de seus sentimentos tomou forma de um grande desejo curioso de aprender sobre o funcionamento da vida e do universo, que é o dado fundamental que o impulsiona a buscar o conhecimento científico.

Nós vimos, assim, que a curiosidade é um fator potente para que Frankenstein obtenha o saber científico. É ela que vai levá-lo a encontrar as obras de grandes autores alquimistas como Cornélio Agrippa (Shelley, 2015, p. 108). No primeiro momento, Frankenstein sente-se fascinado pelas obras dos alquimistas, pensando ter achado uma resposta possível para os mistérios do céu e da terra. Se, antes, ele já tinha um temperamento sonhador e apaixonado, a sua imaginação é atiçada a tal ponto que ele se vê motivado a descobrir a pedra filosofal e o elixir da vida: “Sob orientação de meus novos preceptores, atirei-me com grande diligência à busca da pedra filosofal e do elixir da vida; este, porém, logo monopolizou a minha atenção” (Shelley, 2015, p. 110). Ele pensa, em seguida, na glória e no renome que pode alcançar quando for o detentor de tais segredos.

Por tudo o que foi exposto até aqui, Frankenstein é um jovem cientista movido por paixões acaloradas e ambições grandiosas. Ele se deixa levar pela própria imaginação para criar um cenário em que é aclamado por descobertas científicas importantes no que tange aos mistérios da vida. Compreender a personalidade do personagem é fundamental, porque são esses elementos que vão empurrá-lo à criação de um ser humano outro. Contudo, existe um fator determinante para concretizar o ato desmedido: a perda da própria mãe. O jovem estava prestes a ingressar na Universidade de Ingolstadt quando Caroline Frankenstein contrai escarlatina e vem a falecer.

A maneira como o personagem descreve o cadáver de sua mãe é bastante significativa. Fica evidente que Caroline era uma mulher terna, uma característica que fica estampada em seu rosto mesmo no momento da partida — “[…] seu rosto expressava afeição até na morte” (Shelley, 2015, p. 114). Com isso, notamos que os laços afetivos entre ela e os outros membros da família não se rompem, o que torna a despedida um processo difícil. Mesmo que Frankenstein se proponha a relatar esse momento, ele não dá muitos detalhes; inclusive, parece desconversar sobre o assunto: “[…] No entanto, quem já não teve algum ente querido subtraído por tal mão insensível? E por que deveria eu descrever uma dor que todos já sentiram ou sentirão?” (Ibidem, p. 114). Existe, portanto, uma dificuldade de lidar com o luto e processar a sua perda.

Freud, em sua obra Luto e Melancolia afirma que: “Via de regra, luto é a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc” (Freud, 2010, p.172). Em outras palavras, o luto é uma dor natural da existência humana devido à perda de algo que ocupe um espaço basilar na vida de um indivíduo. O trabalho de luto é tido como um doloroso abatimento no qual o enlutado perde a capacidade de substituir o pranteado e se afasta de toda atividade que não esteja ligada à memória do falecido (Freud, 2010, p.173). Como o objeto de amor não mais existe, é preciso que toda a libido associada ao objeto seja desconectada do mesmo. Abandonar a posição libidinal pode produzir um afastamento da realidade e o enlutado aos poucos vai voltando à realidade, mas até que esse retorno seja efetivado, o objeto perdido continua a existir na psique.

No caso de Frankenstein, a perda da mãe fragmenta o eu, abrindo um abismo dentro de si no qual ele parece divagar sem perspectivas. Frankenstein precisa encontrar sentido no mundo novamente e é isso que o impele à criação. Contudo, ele não dá tempo de vivenciar o luto, indo para Ingolstadt e frequentando as aulas. Neste sentido, ele é incapaz de experienciar a perda pela perspectiva adotada por Freud, isto é, de maneira passiva. Pelo contrário, ele mergulha nos estudos e se devota a criar um ser humano como uma maneira de encontrar um substituto pela perda.

Em suma, uma conjuntura de três fatores contribui para compreender quem é Frankenstein e as motivações para confrontar as leis da natureza. Em primeiro lugar, a sua posição social, que confere a ele acesso ao conhecimento formal e, principalmente, à filosofia natural. Em segundo lugar, o seu temperamento apaixonado, que o leva a explorar o funcionamento da vida e a desejar ser o detentor da pedra filosofal e do elixir da vida. Por último, a morte de Caroline configura uma força motriz para transformar a sua imaginação em ação. Frankenstein busca encontrar, com a criação de seu monstro, um substituto para a sua perda. Com isso, chegamos no caráter contemporâneo da obra: Frankenstein como metáfora de um fazer científico que visa exceder os limites entre a vida e a morte.

Frankenstein como metáfora

Indiscutivelmente, estamos vivendo em um novo patamar da Revolução Científica. Como exemplo disso, cientistas já são capazes de desenvolver embriões de camundongos em útero mecânico[1]. Esse é um dado que aponta uma mudança drástica nas formas de geração da vida. Para Yuval Noah Harari, em Sapiens: Uma breve história da humanidade (2020), a Revolução Científica vai além de um simples marco histórico, podendo se mostrar “a mais importante revolução biológica desde o aparecimento de vida na Terra” (Harari, 2020, p.420). O argumento de Harari é que o Homo sapiens está estendendo as suas habilidades como projetista ao substituir as leis da seleção natural pelas leis de design inteligente.

Contudo, o Homo sapiens pode sofrer sérias consequências ao se colocar na posição de criador divino e reverter as leis da natureza. Neste ponto, o autor sustenta que Frankenstein ou o Prometeu moderno age como uma profecia, proporcionando à humanidade o vislumbre de possibilidades existenciais mais próximas do que talvez gostaríamos de admitir (Harari, 2020, p.433). Quando o Homo sapiens se faz Homo deus ao criar novas formas de vida, desloca-se para um ponto de desestabilização; ser o criador de novos seres que podem substituí-lo abre para um abismo de variáveis que não é capaz de controlar, do mesmo modo como Victor Frankenstein não consegue controlar os passos de sua criatura monstruosa e devoradora.

O Homo deus performa Victor Frankenstein ao viabilizar, através da técnica, criaturas que ultrapassam as condições da nossa espécie. Dessa maneira, a obra de Mary Shelley apresenta figuras poéticas chave que abrem caminho para reflexões sobre esse fazer científico que ultrapassa as condições humanas orgânicas, suscitando provocações imaginativas sobre o futuro da espécie e da sociedade à luz das ferramentas biotecnológicas.

As dores de Frankenstein, somadas à sua bagagem de conhecimento, proporcionam uma inversão na ordem do mundo ao trazerem o monstruoso à vida. Se Frankenstein é o Homo Deus, podemos pensar em quantos cientistas que, como ele, produzem novas formas de existir, abrindo campo para uma reconfiguração no nosso modo de viver. Dessa forma, uma das maneiras de se pensar na contemporaneidade de Frankenstein ou o Prometeu moderno é perceber que Mary Shelley, no século XIX. constrói uma narrativa em que o cientista propicia uma nova estrutura que se aproxima dos dilemas éticos do fazer científico do século XXI e das gerações futuras. É assim que percebemos, então, a riqueza da obra em questão e de sua permanência através dos séculos.

 

Referências

FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Freud (1914-1916) introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. 1. ed. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o Prometeu moderno. Tradução de Christian Schwartz. 1. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.

[1]Informação retirada de https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2021/03/17/cientistas-desenvolvem-embrioes-de-camundongos-em-utero-mecanico.ghtml acessada em 17/06/2024.

Publicado por

Isadora Schwenck

Isadora Schwenck Corrêa de Brito é doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista CAPES. Sua pesquisa visa refletir sobre mulheres bruxas na literatura de língua inglesa do século XIX ao século XXI. Isadora também realizou o mestrado na mesma instituição, cujo tema foi Frankenstein: uma leitura contemporânea. Tem dupla habilitação em Letras pela PUC-RIO: Tradução/Inglês e Licenciatura/Inglês. Sua área de interesse de pesquisa envolve gênero e estudos de gótico.

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