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Resenha: Everything I Know About Love (2022, BBC)Leitura em 8 minutos

Marli Siu, Emma Appleton, Bel Powley e Aliyah Odoffin em cena de Everything I Know About Love

Para falar sobre Everything I Know About Love é preciso falar sobre Dolly Alderton. Em outubro de 2020, um livro muito esperado foi entregue pelos Correios na minha casa. Encontrei o pacote me esperando e a primeira coisa que fiz foi abrir a caixa de papelão, rasgando em seguida o embrulho interno que protegia o volume. Quando cheguei na folha de rosto, tive uma crise de choro: era Ghosts, o primeiro romance de Dolly Alderton e minha edição não apenas era autografada, mas também dedicada a mim. Dolly escreveu:

To Marcela

Love,
Dolly X

Eu já sabia que o livro viria assim: ele foi comprado em uma pré-venda especial. Isso não fez diferença nenhuma na minha reação. Dolly Alderton foi a única pessoa que me levou a escutar um podcast recorrentemente. Ela foi uma voz perspicaz e engraçada que me acompanhou por muito tempo, de colunas no Sunday Times até o primeiro livro que ela publicou, em 2017, Everything I Know About Love. O mesmo love que antecede a assinatura da dedicatória do meu livro foi algo que por muito tempo eu pensei em conjunto com os textos de Alderton: amor enquanto multiplicidade, complexidade e polifonia. Perigoso, mas vital. Incontornável, doloroso e fonte das maiores alegrias. O que Dolly Alderton me ensinou sobre o amor?

O que você precisa saber sobre Everything I Know About Love?

Everything I Know About Love não é um romance e, portanto, não traz uma narrativa, um enredo per se. Trata-se de um memoir: alguém poderia questionar por que Alderton se proporia a publicar um aos 29 anos, mas seus leitores e, talvez principalmente suas leitoras, entenderam absolutamente a proposta do livro.

Em termos de forma, Everything traz uma coleção de entradas de diário, receitas, relatos, resumos (irônicos, em retrospecto) do que Dolly sabia sobre o amor aos 20, ou aos 25 anos, memórias, de fato, e pequenos ensaios. Ao acompanhar as aventuras e desventuras de Alderton, no entanto, a maioria do público leitor que pertença à geração da autora encontrará alguma coisa que permita identificação:  as estratégias para chamar a atenção da pessoa de quem você gostava no MSN Messenger, as fofocas adolescentes que circulavam naquela plataforma, comportamentos ridículos de garotos e, alguns anos mais tarde, de homens. Ansiedades em comum não faltam.

A cena que Alderton delineia é instantaneamente reconhecível se você esteve lá, ouvindo o som da internet discada finalmente conectada, as festas desconfortáveis e as pressões inerentes à essa fase da vida. Alderton compartilha com o leitor de forma sincera sua experiência com transtornos alimentares, relacionamentos ruins, triunfos e fracassos profissionais, além da relação complicada entre a internet e a exposição pessoal.

Bel Powley e Emma Appleton em cena de Everything I Know About Love

Seu maior triunfo, no entanto,  está na forma como trabalha nos textos sua relação com outras mulheres: suas melhores amigas, sua mãe, ela própria. É na atenção dada a esses vínculos que Everything I Know About Love se torna uma obra que realmente merece o tempo do leitor. Felizmente, estes foram os vínculos que Alderton manteve no centro da adaptação do memoir para a minissérie da BBC, na qual atuou como roteirista.

Como adaptar um memoir?

Em uma resenha que explora seus próprios vínculos com a escrita de Alderton, Pravina Rudra observa que “O drama de TV da BBC baseado nas memórias de Dolly Alderton captura uma realidade feminina millennial que certos homens têm dificuldades para entender”. De fato, as postagens sobre a minissérie nas redes sociais tiveram sua cota de comentários redigidos por homens aleatórios considerando a minissérie “superestimada”. Para quem, então, Everything I Know About Love foi pensado?

Adaptar um memoir por meio da ficcionalização foi uma estratégia tanto brilhante quanto arriscada. Transpor uma coleção de experiências pessoais para o formato de uma narrativa audiovisual com enredo e personagens fictícios poderia significar a perda da dinâmica e da identificação entre leitora e autora. Alderton, no entanto, mostrou estar à altura do desafio: no início de cada episódio o telespectador é lembrado que “esta obra é inspirada em eventos da vida real e pessoas reais (mas ficionalizada quando a vida não ofereceu uma história boa o bastante”.

Esta obra é inspirada em eventos da vida real e pessoas reais (mas ficionalizada quando a vida não ofereceu uma história boa o bastante.

Na prática, isso significa que Dolly vira Maggie (Emma Appleton) e Farly vira Birdy (Bel Powley). A amizade das duas, que remonta à infância, é afetada pela guinada que a vida de Birdy dá quando conhece Nathan (Scott, no livro). No livro e na série nossas protagonistas lamentam terem apresentado os dois: Nathan é colega de quarto de Street, o “namorado” pretensioso e pouco afetuoso de Maggie.  É dela que parte a ideia de dar o telefone de Farly para Nathan.

“Nunca tive tanta sorte na minha vida quanto no dia em que Farly sentou ao meu lado em uma aula de matemática em 1999.” – Dolly Alderton, Everything I Know About Love

Em meio a todas as festas, encontros, altos e baixos na vida profissional e tentativas de navegar seus vinte-e-poucos anos, a grande crise de Maggie é o afastamento de Birdy advindo do relacionamento. O enredo da série é enriquecido pela rapidez com que isso se desdobra. Se no livro a crise se desdobra ao longo de muitos anos, as tensões também são elevadas pelo fato de Nathan ser infinitamente mais inconveniente que Scott. O comportamento de Birdy também é, de fato, reprovável em diversas instâncias, enquanto a dinâmica de Dolly e Farly se reajusta de forma mais orgânica. Não há dúvida de que, ao menos naquela fase de sua vida, Birdy é a verdadeira alma gêmea de Maggie, que fica de coração partido ao pensar nos anos que Nathan “roubou” das duas ao apressar uma espécie de amadurecimento na amiga.

As nuances que marcam a relação – por vezes codependente – das duas são refinadas pelo fato de a série ser estruturada em torno de um quarteto principal. Se no livro Dolly e Farly dividem uma casa em Camden com AJ, na minissérie Maggie e Birdy são acompanhadas por Nell (Marli Siu) e Amara (Aliyah Odoffin). Nell é professora, Amara é dançarina, mas abriu mão do sonho por um emprego seguro na área corporativa. O telespectador acompanha os desdobramentos românticos e profissionais nas vidas das quatro, para além das reverberações dos eventos da vida da protagonista. Os vínculos e dinâmicas entre as amigas – e os diferentes subgrupos que elas formam – são explorados de forma magistral.

Maggie, AJ, Birdie e Amara em cena de Everything I Know About Love.

 Muitos dos eventos narrados no memoir são aproveitados no enredo da série, mas namorados ruins são misturados em um só personagem (Graysen e o “namorado músico” que morava no East End são Street, interpretado por Connor Finch), a linha do tempo é condensada e alguns acontecimentos são realocados: “A Hellraiser Heads to Leamington Spa”, uma das passagens mais famosas do livro, é transferida da cidade de Warwickshire: na série temos Maggie sem dinheiro para voltar de Liverpool e recorrendo à Farly, que paga uma passagem de ônibus para a amiga.  Algumas questões, no entanto, não ganham espaço na série, como a doença da irmã de Farly e a maioria das desventuras românticas de Dolly.

A série é bem-sucedida e agrada leitores de Alderton porque capta precisamente tanto a nostalgia do livro tanto por um tempo que já passou: sejam os anos 2000 da adolescência de Dolly, sejam os 2010s e os vestidos da coleção Kate Moss for TopShop que marcam a minissérie. Há, no próprio tom da minissérie, uma nostalgia já vivida pelo aspecto passageiro da liberdade que as amizades dos vinte-e-poucos-anos oferecem, talvez pelo esforço contínuo de Maggie de viver essa fase de sua vida na velocidade máxima, caçando experiências sem se importar onde.

No livro, Alderton cita a definição de Morrissey de sua adolescência passada “esperando por um ônibus que nunca veio” e talvez as expectativas infladas por uma adolescência sem grandes eventos sejam também responsáveis pela frustração com uma primeira década da vida adulta que não se desenrola (romântica, profissional, afetiva, psicologicamente) como se esperava. Everything I Know About Love, livro e série, acertam ao refletir de forma honesta os vínculos, as incertezas e a vulnerabilidade humana de suas personagens, enquanto analisam tanto uma época no tempo, as primeiras décadas do nosso milênio, quanto uma época na vida, a adolescência e o início da vida adulta. Que Alderton faça isso focalizando não apenas personagens mulheres quanto os vínculos entre elas é um trunfo e um presente.

A adaptação ainda não estreou no Brasil, mas seu impacto já é sentido: a editora Intrínseca anunciou a publicação de Tudo o que eu sei sobre o amor para julho de 2022.

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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