Conforme afirmado no post do dia 26/11, através de heranças mediadas pela sublimação do hardcore, obtém-se certas similaridades entre artistas musicais aparentemente opostos. Entretanto, ainda deve ser especificado o estado disso hoje em dia, tendo em vista a mudança nas relações entre a contracultura hardcore e a cultura pop da década de 1990 para 2020, contribuindo para uma absorção daquela por esta, juntamente às representações de gênero neste produto final. Desse jeito, podem-se alinhar as diferenças e as similaridades entre, por exemplo, as músicas de Bikini Kill e de Olivia Rodrigo, ou entre The Get Up Kids e Camping in Alaska. Ao mesmo tempo, por mais diferentes ou parecidos que Modern Baseball e Taylor Swift, ou que Fall Out Boy e Weezer possam ser, destaca-se o fio condutor que os liga: a relação da persona da canção com o amor, e por consequência, consigo mesma.
Amor
Através de que lógica se chega à conclusão de que falar de amor é falar de si mesmo? No amor, o sujeito (que ama) é necessariamente revelado porque o próprio amor se baseia em enxergar a si mesmo no objeto amado, a fim de se “tornar um com o outro”. Seguindo esta linha de raciocínio, informada parcialmente pela escritora canadense Anne Carson em seu livro Eros, o Doce-Amargo, se encontra que, na verdade, o verbo seria “retornar” a ser um com o outro. Como Aristófanes explica no Banquete de Platão, os seres humanos eram, originalmente, organismos compostos de duas pessoas ligadas uma à outra, até Zeus os cortarem ao meio. Desde que fomos separados, “cada um de nós está pra sempre caçando a metade correspondente de si mesmo”, completando o que uma vez era. Ou seja, ao amar e querer ser amado, o sujeito se torna evidente enquanto só, enquanto querendo preencher a distância para deixar de sê-lo.
O eu do poema e da canção
Por conta disso, a representação de “alguém que tem amor por outro” pode ser caracterizada por um viés auto-descritivo, especialmente quando o “outro” não tem amor de volta – o que, na forma que muitas vezes tem a canção, com seu “eu-lírico”, a factualidade dos sentimentos deste outro não pode ser contestada. O que é representado nestas escritas concernente ao outro é sempre sob a perspectiva de quem narra, a do sujeito lírico. Por isso, só se sabe o que este sujeito sabe, sente, acha, experiencia, o que é marcado nele e por ele reportado na canção. Assim, quando uma pessoa canta sobre o amor que o eu-lírico tem, esta pode ser uma narrativa auto-orientada.
Indo além, pode se ver a canção, enquanto performance, como necessariamente ministrada por quem canta. É claro que os intérpretes, de maneira geral, são imediatamente os marcadores da performance, mas na posição daquele que verbaliza se percebe maior prestígio: é nele que se materializa a persona da canção, o eu-lírico. Desta maneira, se nota o corpo do vocalista na performance como o significador do que ele canta, (sua aparência, suas interações com a audiência e os outros intérpretes, seus feitos no momento e aqueles que já são de conhecimento comum, a sua reputação, seus vocais) da mesma forma que tudo pertencente a sua presença e a como ela é percebida, como o meio pelo qual aparece a canção e o seu sujeito.
Deste modo, a presença principal de um corpo, de uma voz, e, por consequência, de uma persona da canção já confere a canção esse viés auto-orientado, com o prestígio que o eu tem. Ao mesmo tempo, se percebe que os sentidos, instaurados tanto pelo eu da canção quanto por aquele que o canta, não se limitam aos dois e nem ao momento único em que ocorre a canção.
Afinal, como pode a plateia cantar junto aos cantores nos concertos musicais, apesar de essa não ser quem as escreveu? Isso se revela especialmente curioso ao usar a imagem simbólica da Beatlemania, na qual um público jovem feminino grita mais alto do que os próprios membros da banda podem se ouvir, apesar da diferença de gênero, que é marcada tanto nas letras quanto no palco. No contexto de artistas de língua inglesa que se diferem de seus ouvintes brasileiros, em não apenas continentes e língua, mas cultura, realidade socioeconômica, e vivência, essa pergunta pesa ainda mais.
A ela, é respondida a diferenciação, como salientada por Dominique Combe, entre o eu empírico, o eu autobiográfico e o eu-lírico: enquanto o primeiro retrata as relações do autor com o sujeito poético, verificando as cognições pessoais dele e a sua ficcionalização, o segundo se referencia ao autor e à sua realidade fora da ficção, ao passo em que o terceiro fala do sujeito criado no texto e da sua realidade fictícia. Dessa maneira, pode-se ver no sujeito lírico que o seu sentido transcende a ficção e a realidade, contemplando o autor e o leitor. Através do sentimento nele, o eu-lírico corresponde a um valor universal e real. A essa discussão também importa a forma específica à canção, que é considerada por Combe ao apontar a existência enunciada por qual tanto o eu poético quanto o eu cancional se dão. Ou seja, apesar da autoria do cantor sobre o eu da canção, o canto uníssono dos intérpretes do palco e da plateia pode representar o sentido que transcende bandas e fãs, garotas e garotos, adolescentes e adultos, norte-americanos e sul-americanos, etc.
Uma pequena nota
Isso também retorna ao amor de Eros: apesar da diferença real entre os amantes e os seus amados, no amor, eles são (re)feitos o mesmo. Desta forma, a diferença entre os gêneros masculino e feminino, como exemplo, pode ser subvertida, encontrando a mulher no homem e o homem na mulher. Isso, da mesma maneira que faz o sujeito lírico, aponta para a transcendência de sentido imanente a todos apesar das fronteiras sociais.
No quarto da persona da canção
Retomando os assuntos suscitados pelas duas canções analisadas anteriormente, em My Apology de The Get Up Kids e Grand Theft Autumn/Where is your boy? de Fall Out Boy, pode se achar a inércia disfarçada de impotência na posição dos sujeitos da canção. Além de se conferir um sujeito enfraquecido, performado pelo tipo específico de masculinidade do rock, se vê, também, alguém recuando em si mesmo em meio a sua situação, como uma criança que se retira para o próprio quarto. Sob esta mesma perspectiva, pode se ver o eu-lírico apaixonado.
Isso já é estabelecido na canção de Fall Out Boy, onde o sujeito da canção se recolhe à sua “nova moda de acordar de cueca às quatro da tarde” enquanto o seu objeto de desejo não o deseja de volta. Essa atitude da letra não é apenas (por via de um humor auto-depreciativo) engraçada, quanto é também relatable. Se afastando de pretensões que podem dignificar, embelezar e justificar o eu da canção, de uma maneira que o promoveria para ser o parceiro escolhido por quem ele gosta, a letra se aproxima da realidade íntima do eu da canção a ponto de tirar as suas calças. A existência constrangedora é revelada no lugar disso de modo que, nessa auto-depreciação afetuosa, o que é celebrado é a incompetência, a imperfeição, o constrangimento em relação às expectativas de um eu mais digno e belo.
Ao sujeito cancional apaixonado inferiorizar-se, se implica que, necessariamente, a pessoa de sua paixão é superior a ele, administrando as condições com as quais o sujeito vai lidar. Enquanto estas condições em Where is your boy? correspondem, à princípio, ao garoto titular e as supostas vantagens que ele tem sobre o eu da canção, estas podem ainda ser resumidas a percepção mal-caracterizada que a pessoa amada tem sobre ele. Ou seja, ela o diminui ao não entregar-se a ele.
Garotos apaixonados
Ao mesmo tempo que nesta dinâmica pode-se ver, simplesmente, a relação do sujeito-que-deseja com o seu objeto de desejo, as implicações disso em uma relação heteronormativa evidentemente simbolizam mais do que este molde.
Ao passo que este single do Fall Out Boy se recolha a uma ânsia saudosa por quem ele gosta, amaciada pela auto-depreciação em que ainda se mostra um tom que não é de todo melancólico, outras canções do Take This to Your Grave (2003) e de outros álbuns da banda podem ser mais rancorosas. Versos como “I want to hate you half as much as I hate myself” ou “I wish I was as invisible as you make me feel” de The Pros and Cons of Breathing do mesmo álbum já ressalta uma fúria que é tanto direcionada ao eu da canção quanto ao seu objeto de paixão.
Nisso, pode ser possível avistar uma misoginia implícita que lembra o que foi escrito por Andrea Dworkin em seu livro Intercourse (1987) a respeito da suposta submissão masculina à mulher. Tida apenas como objeto sexual, a mulher tem controle sobre o que homem quer e precisa enquanto homem. Tendo este acesso negado, o homem é inferiorizado e dominado pela mulher, que o faz ter menos controle e poder. Segundo Dworkin, essa submissão é “emocionalmente, sexualmente, psicologicamente real para o homem, de modo a fundar a raiva do misógino”.
A persona relatable nas canções de amor
Desse jeito, transparecem duas direções que esse pobre eu da canção pode seguir: um sério descontentamento consigo mesmo ao ter seu objeto de paixão inalcançável, e uma risonha compreensão auto-piedosa sobre si. Nesta parte final do ensaio, veremos mais duas performances desses diferentes ângulos, atravessadas tanto por suas relações particulares com a indústria fonográfica pop e a herança hardcore que a transgride, quanto com as relações de gênero.
Recuperando dois dos atos musicais mencionados no início do texto, se vê continuado o eu-lírico amplamente aberto a ser preenchido para a auto-identificação dos ouvintes. No entanto, a soberania feminina de Taylor Swift na indústria de música pop, mesmo que construída com o tempo, apresenta narrativas diferentes das da existência nichada e Emo revivalista de Modern Baseball.
Como mencionado no outro post, os vocais de Modern Baseball se apoiaram, mais do que algumas vezes, em um tom de fala mais do que no canto. Além de já se diferir substancialmente do canto consistente, melódico e treinado de Swift, como se vê geralmente nas artistas femininas do pop, a voz crua, monótona, a qual o instrumental reserva silêncio para deixar comentários adicionais ao “canto”, aparece mais como o meio de contar histórias do que seu próprio instrumento. Os vocais distintamente juvenis demonstram uma autoconfiança específica, que é inferior à potência performada por Swift, por não se sustentar nas mesmas imagens que ela. Enquanto, nas diferentes eras que a cantora performou, permaneceu o lugar prestigiado de uma cantora de menina a mulher, da convivência da banda formada na universidade saiu o trabalho conjunto e solidário com o eu-lírico performado. Dessa maneira, não cantam tanto quanto contam Bren Lukens e Jake Ewald, do mesmo jeito que não performam uma presença tão auto-orientada e empoderada quanto a de Swift, porque as vozes dos outros membros concordam com as deles e que todos estão em companhia.
Na mesma moda, o sujeito da canção vai aparecer, e através da solidariedade em grupo e da menor pressão de performar uma teatralidade esperada tanto da única figura em um palco quanto das figuras femininas nas apresentações musicais do gênero de Swift, o intimismo se traduzirá em tom coloquial de conversa.
Assim, a cena engraçada e relatable de Where is your boy? é reprisada nas letras de canções como Rock Bottom, que, ao narrar o encontro do eu-lírico apaixonado com a sua paixão, evidencia o nervosismo e a awkwardness dele: a inferioridade daquele que deseja.
My head is on the verge of exploding
No amount of aspirin or pizza could help this from hurting
And now, I’m turning to you, scared shitless
Hoping this all goes well
Can we highlight the fact that
My mouth smells like coffee and garlic?
The five cups I had this morning are getting to me
I gotta go—I got the worst fucking spins
Na mesma instância que o eu-lírico conta estar “scared shitless” ao se virar com a pessoa amada, a sua imperfeição se percebe de maneira horizontal: a sua cabeça dói por conta da situação, o fazendo se encher de pizza e remédio, e por conta disso e pela grande quantidade de cafeína que ele ingeriu, ele está com bafo forte. Vale também apontar que, ao longo da canção, o desejo do eu da canção mais se descreve através do nervosismo dele em encontrar-se com sua paixão do que por uma declaração mais explícita de amor.
Embora Taylor Swift tenha, durante a carreira, performado diferentes eras (de modo que as canções de 2009 sejam diversas em tom, gênero, linguagem, etc, das de 2017, por exemplo) ainda é possível capturar uma persona lírica relatable em suas canções. You Belong with Me pode se apresentar como um forte exemplo, tendo em vista as referências a um triângulo amoroso do mesmo jeito de Grand Theft Autumn/Where is your boy? assim como outras canções de Fall Out Boy e mesmo Modern Baseball.
Na performance de Swift no início de sua carreira podia-se ver replicada a imagem do adolescente no próprio quarto, recolhido em sua imperfeição enquanto a metade única de um todo que não se torna real. Ao garantir-se prestígio na indústria de música pop na primeira metade da década de 2010, pode-se ver esta persona cancional relatable se misturar àquela do pop, de maneira que a imagem original da sinceridade de uma jovem com seu violão se pareça mais à de uma jovem seguindo uma coreografia e sendo imitada por um conjunto de dançarinos. Ao mesmo tempo, nos últimos álbuns, como The Tortured Poets Department (2024) , encontra-se um retorno particular ao sujeito de canção vulneravelmente sincero.
I’m so depressed, I act like it’s my birthday every day
I’m so obsessed with him, but he avoids me like the plague
I cry a lot, but I am so productive, it’s an art
You know you’re good when you can even do it with a broken heart
Da mesma maneira que a estrofe de Rock Bottom, revela-se a cena de um eu-lírico enfraquecido em vista dos problemas com o amor, no entanto, se mostra nas repetições e rimas calculadas, além do que já é entendido da performance de artistas pop, uma distância da persona desleixada e semi-contida de Modern Baseball. Além de isso demonstrar uma diferença entre gêneros de música, entre nichos, também ressalta a diferença dos gêneros entre os membros de Modern Baseball enquanto reunidos e a de Taylor Swift.
Publicado por
É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.