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Esperando Godot e o existencialismoLeitura em 8 minutos

Foto de uma produção de Esperando Godot

 

Segundo o escrito de 1942 do francês Albert Camus, absurdas são as condições de Sísifo, que teve a vida reduzida ao trabalho de eternamente rolar uma rocha sobre uma montanha, em que toda vez que ela chega no topo, cai e começa tudo de novo. A sufocante falta de propósito na vida de Sísifo, além de levantar questões sobre a existência humana, é o espírito por trás do Teatro do Absurdo, cujos personagens o autor Jean-Paul Sartre, partindo de Camus, pôde descrever como “aqueles que tiram conclusões inevitáveis sobre a absurdidade fundamental”. Enquanto ambos existencialistas definem a própria condição humana absurda em razão de sua intrínseca falta de sentido, Esperando por Godot, peça considerada um dos tesouros absurdistas, acrescenta ao horror do homem jogado a vastidão do universo, sugerindo a ênfase no absurdo nas relações interpessoais – afinal, as condições de Sísifo decorreram da punição divina. Assim, a obra do irlandês Samuel Beckett descreve o absurdo na existência humana no retrato de dois vagabundos num vazio devastado – esperando que alguém os revele a razão porquê.

Estreando em 1953, a “tragicomédia de dois atos” segue a longa espera de Vladimir e Estragon por Godot, que nunca chega. Acompanhados apenas pela própria conversa e o ponto de referência de uma árvore deformada, os velhos amigos, inexplicavelmente, passam o tempo. Como é famosamente atribuído, é uma peça sobre nada, onde nada acontece, duas vezes, em uma cadeia de eventos fortemente marcada pelo nonsense da situação e dos diálogos. As duas metades da obra mais se assemelham a duas versões de um mesmo ato, devido aos mesmos fins e a mesma falta de enredo. Por conta disso, o texto de Beckett pode ser considerado desafiador em sua falta de sentido, até considerado ele mesmo insignificante, mas é este vazio desconfortável que confronta seu espectador o mesmo da condição humana, e é por ela que seu significado é criado. 

A mais sólida interpretação de Godot está na espera pelo nada e nas dispersões que os dois personagens tiram durante ela: os eventos espelhando a vida e a vã significação que os humanos constroem em torno dela. A espera por Godot, neste sentido, se equivale ao absurdo de seguir rolando a rocha como se ela realmente fosse chegar ao topo da montanha; plantados em seus lugares e digressões, Estragon e Vladimir esperam por uma razão que nunca chega para justificar e finalizar o tempo passado. Tal como na punição a Sísifo, tal como na condição humana, não há escolha a não ser reafirmar a importância dessa razão, à sua espera. Neste sentido, Godot seria a razão de ser de Vladimir e Estragon nesse meio-do-nada, aparentando ser o sentido dominante na peça: os acontecimentos do texto e as situações que eles viveram provocadas por ele, mesmo o sujeito jamais aparecendo em cena. Essa presente ausência de Godot, a duvidosa existência dele, pode aludir a uma força divina; seja ela os deuses que puniram Sísifo, “Deus”, da onde viria o nome de Godot, o universo e seu emaranhado de condições, os quais concederam essa, ou mesmo a morte, fazendo, por fim, valer a vida.

Por isso, outra popular impressão de Esperando Godot é a sua alusão religiosa, destacando as primeiras três letras do nome do personagem titular e as apertando contra si. Além da dependência dos dois mortais em Godot durante a peça, de Godot ser o significado secreto que explica todas as ações na Terra, é claramente esperado mais dele do que somente sua presença. Ela é necessária como uma salvação para Estragon e Vladimir, uma paz homogênea e etérea que os guardará da insignificante terra apodrecida, os conservando no valor que finalmente lhes daria às suas vidas. Desse jeito, utilizando-se da polissemia do personagem de Godot, pode-se perceber o mesmo sentido ao considerá-lo uma metáfora para a morte, a vida, o amor, Deus, e a passagem do tempo. A sugestão dessa carga religiosa em Godot dimensiona a interpretação existencialista por expôr o sentimento indefeso de esperança e a inferioridade inescapável dos personagens – a visível rendição deles a sua ordem.

Isso só se expande na relação de dois personagens menores, Pozzo e Lucky, que em si mesma, apesar de sua hostilidade, não é tão alheia a dos protagonistas. Enquanto possa ser dito que a maior certeza na peça é o papel de cada personagem – Estragon e Vladimir sempre tem um ao outro, Godot sempre deve ser esperado – são no mestre Pozzo e, consequentemente, o seu escravo Lucky, onde isso se mostra agresivamente explícito. Desde sua entrada, é certo que Pozzo é o grito de ordem num mundo aparentemente desprovido dela, determinado e assegurado na maneira que se carrega, que precisamente se corresponde a escravidão de Lucky. Comparados a Estragon e Vladimir, é verificada nenhuma sombra de dúvida ou desacordo nas relações do mestre e do escravo com seus respectivos lugares – o par principal, mesmo que acorrentado à espera de Godot, ainda se rende a dispersão de seu fim inevitável.

Foto de outra produção de Esperando Godot, na qual se mostra Pozzo e Lucky. Pozzo está sentado segurando a corda amarrada a Lucky, enquanto no meio, Estragon e Vladimir os olham.
A escravidão de Lucky

 

Consequentemente, é a desumanidade de Lucky – a princípio, sua incapacidade de pensar por si mesmo, que no meio do primeiro ato se revela, contudo, na incapacidade de agir por si mesmo – que justifica o seu uso por Pozzo. Os dois personagens, nas palavras do mesmo, pertencentes a seus respectivos papéis: Lucky faria o mesmo no lugar de Pozzo, fosse o contrário. Assim, o par reflete a verdade objetiva das lógicas do mestre e do escravo de Nietzsche, iluminando de maneira única um dos sentidos da peça. Indiferente a capacidade de Lucky de pensar, da mesma forma que Estragon e Vladimir, o escravizado não tem escolha em sua posição, carregando as bagagens de Pozzo mesmo quando é permitido descanso. Desta maneira, Pozzo, tal como a ordem de esperar Godot, se impõe como o único sentido, a ordem universal; submetendo Lucky, assim como é feito a Estragon e Vladimir por Godot. Essa é uma das maneiras em que Beckett representa o absurdo; a falta de significado no sujeito sozinho, sendo ele reificado pelos seus arredores. Isso se assevera grandemente na medida que estes arredores representam relações desiguais de poder; a escravidão (tanto de Lucky quanto do menino e o seu irmão que trabalham para Godot) sendo o maior exemplo disso. É da mesma maneira que um dos maiores leitores de Beckett, Theodor W. Adorno, percebe o absurdismo proposto pelo existencialismo: ao sujeito, a existência é insignificante fora de uma ordem a qual ela se inscreva.

Desse jeito, o absurdo, embora seja destacado em uma hierarquia de poder, ainda permanece na condição humana sendo ela mesma intrinsecamente respondente a subserviência – o “fardo de ser” que escreveu Sartre (1943). A humanidade não sendo dada escolha senão a de existir ou de ter existido, o único sentido limitado em si mesmo, acompanhado pela vasta brancura pálida e o que quer que a prosa possa imaginar. 

Em um segundo plano, o tanto que Estragon e Vladimir se expressam, apesar do entendimento mutual de haver “nada a ser feito”, significa tanto quanto as condições que os empurraram a ele, porque, como resume Vladimir,

 

“All I know is that the hours are long, under these conditions, and constrain us to beguile them with proceedings which –how shall I say– which may at first sight seem reasonable, until they become a habit. You may say it is to prevent our reason from foundering. No doubt. But has it not long been straying in the night without end of the abyssal depths?” (1955, pp. 45)

 

No entanto, além dos recursos usados para passar o tempo serem os próprios produtos do tempo, ou seja, da dominação dos personagens, eles também o produto um do outro. Da mesma forma que eles estão acorrentados a própria existência, os personagens estão para as palavras, as diversões, a si mesmos e, ultimamente, para uns aos outros. Desse jeito, se encontra a liberdade que falava Sartre, o viver para-si – tanto a leitura de Adorno quanto a dele se unindo, tendo em vista que, ao mesmo tempo que a condenação ultimamente se dá a um contexto de relações de poder, também se dá a vida ela mesma e aos significados imbuídos a ela. Desse jeito, se ilumina a amizade de Vladimir e Estragon, a qual os dois se veem sem escolha senão a ter, a verdadeira constância da inteira peça;

ESTRAGON: I sometimes wonder if we wouldn’t have been better off alone, each one for himself. (He crosses the stage and sits down on the mound.) We weren’t made for the same road. 

VLADIMIR: 

(without anger). It’s not certain. 

ESTRAGON: 

No, nothing is certain. 

Vladimir slowly crosses the stage and sits down beside Estragon.

VLADIMIR: 

We can still part, if you think it would be better. 

ESTRAGON: 

It’s not worthwhile now. 

Silence

VLADIMIR: 

No, it’s not worthwhile now.  (1955, pp. 45)

Publicado por

É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.

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