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“Entre a Medusa e o abismo”: performance e política em “O Riso da Medusa” de Hélène CixousLeitura em 11 minutos

Parece-me fortuito abrir a coluna “Mulheres e Ficção” por um tema que permeou nossas ideias quando eu e Barbara começamos a criar conteúdo online sobre literatura, isto é, a escrita feminina, as mulheres e a ficção – partindo do ensaio de 1929 de Virginia Woolf de mesmo nome que daria origem ao seu Um quarto só seu, também de 1929. Mesmo que, ao criar o “Mulheres e Ficção”, nossa inspiração principal tenha sido, de fato, Virginia Woolf, há uma outra autora subjacente que atravessa todo o nosso pensamento quando se trata do campo semântico em torno de mulheres, escrita e ficção: Hélène Cixous e seu conceito de écriture féminine – a escrita feminina. É sobre ela que irei tratar nesse primeiro contato com a coluna, me detendo, a princípio, sobre seu ensaio manifesto mais célebre, “O Riso da Medusa” (1975), para perceber como Cixous investe no termo “mulher” em seus escritos iniciais como performance na escrita em direção a um argumento político pertinente a seu contexto material e histórico.

A primeira tradução brasileira de “O Riso da Medusa” apareceu no ano de 2022 1, marcando não apenas a entrada do ensaio no mercado editorial brasileiro, mas também da própria autora, uma vez que foi seu primeiro texto traduzido no Brasil. Assim, o contato do público leitor brasileiro com a autora ocorreu quase cinquenta anos depois de Cixous ter se estabelecido como figura central do feminismo da segunda metade do século XX a partir da publicação de “O Riso da Medusa”, em 1975. Dessa forma, enquanto os leitores brasileiros se familiarizam com a obra inicial de Cixous, há toda uma fortuna crítica na França e em países anglófonos que já discute e já fornece vocabulário crítico suficiente para apreendermos este texto inaugural do que ficou conhecido como a segunda onda do feminismo francês.

A pesquisadora Martine Reid nos informa em “Le temps du ‘Rire de la Méduse’” (2015) que o texto apareceu pela primeira vez na revista L’Arc em um número dedicado a Simone de Beauvoir intitulado “Simone de Beauvoir et la lutte des femmes” (em tradução livre: “Simone de Beauvoir e a luta das mulheres”), organizado pela pesquisadora e autora feminista Cathérine Clément (REID, 2015, p. 13 – 14). Ainda segundo Martine Reid, este foi o primeiro número da L’Arc dedicado a uma autora mulher, e o enfoque da publicação não era discutir a obra de Beauvoir por completo, mas sim se debruçar sobre seu livro O Segundo Sexo (1949) (2015, p. 14). Nesse sentido, fica claro o aspecto político e feminista do número em questão, visto que seu intuito era a articulação crítica de um dos textos feministas de maior destaque até então.

Entretanto, em uma entrevista concedida aos pesquisadores e professores Frédéric Regard e Marta Segarra intitulada “Méduse en Sorbonne”2  (2015), Cixous discute a latente falta de menção a Simone de Beauvoir em o “O Riso da Medusa” (1975), publicado em um número dedicado exclusivamente à obra feminista da autora. Regard inicia a entrevista justamente indagando sobre esta ausência, e também reconhecendo que após o aparecimento de “O Riso”, Cixous transcende a primeira leva feminista instaurada na França com Beauvoir e se torna “a nova figura maior do feminismo literário e filosófico francês”3 (2015, p. 133). Cixous oferece como resposta o seguinte:

Assim que Catherine Clément me chamou para participar de um número sobre Simone de Beauvoir, eu disse a ela meu sentimento em relação a Simone de Beauvoir, e que eu seria neutra: há um campo com o qual eu não consigo trocar, que para mim já é passado. (…).

Eu vejo este velho casal [Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre], frágil, pouco esclarecido, extremamente inscrito em uma certa época e uma certa classe, como que sob um vidro, em um cofre de museu. Eu compreendi a imensa decepção daqueles na Argélia na minha turma preparatória de literatura que me diziam “Mas então, Paris é isto? A iluminação é isto? 4 (2015, p. 135).

Através da resposta de Cixous, podemos adicionar uma nova camada política à discussão feminista e da diferença sexual. Como uma mulher argelina, cuja infância foi inteiramente vivida em uma colônia francesa, filha de pais judeus em uma cidade antissemita em um momento tenso de pós-guerra, Cixous e suas conterrâneas não se sentiriam contempladas pelo feminismo de Beauvoir devido a uma questão de classe social e momento histórico. Para Cixous, o feminismo de Beauvoir seria burguês e ultrapassado. Portanto, percebemos que no período em que Cixous escrevia “O Riso da Medusa” (1975), era importante para a autora marcar argumentos de identidade que dessem conta das diferenças materiais que encontrou enquanto seguia sua jornada acadêmica em Paris. Aqui é importante lembrar que alguns anos antes da publicação de “O Riso” Paris testemunhava as revoltas estudantis de maio de 1968, cujo cerne era o questionamento das figuras de autoridade e do conservadorismo que informavam o sistema educacional francês. Além disso, é também em meados dos anos 60 que os filósofos franceses do que a crítica norte-americana convencionaria chamar de pós-estruturalismo começam a se estabelecer através de figuras precursoras como Roland Barthes e Michel Foucault. É também após esse momento que a crítica anglófona identifica autoras que escreviam sobre feminismo, psicanálise, filosofia e literatura sob a alcunha de “feminismo pós-estruturalista”, cujos principais nomes seriam, além de Cixous, Luce Irigaray e Julia Kristeva, embora estudos mais recentes já tenham mostrado que agrupar autoras tão heterogêneas seja um movimento redutor para a significância de suas obras. Nesse sentido, a década seguinte a essas revoluções sociais e filosóficas estaria impregnada de um clima de mudança e questionamento de velhos conceitos pré-estabelecidos de autoridade, nação, política, identidade, entre outros.

Talvez seja por essa razão que “O Riso da Medusa” (1975) seja, antes de qualquer coisa, um manifesto. Em seu texto, Cixous incita as mulheres à escrita como forma de desestabilizar o repertório teórico, literário e filosófico que sustentava uma sociedade em que a palavra masculina era lei, ou em suas próprias palavras, um sistema falogocêntrico. É o que ela parece afirmar no seguinte trecho:

Abro aqui um parêntese: afirmo, sim, a existência de uma escrita masculina. Eu defendo, sem equívoco, que existem escritas marcadas; que a escrita foi, até agora, e de maneira bem mais extensa, repressiva, mais do que supomos ou confessamos, administrada por uma economia libidinal e cultural – logo, política, tipicamente masculina – (…)” (1975, p. 49).

Portanto, Cixous reconhece a raiz binária e problemática por traz do apagamento e subjugação do feminino, e também da mulher empírica, estabelecendo seus principais argumentos em relação ao feminismo e à diferença sexual. Assim, é possível perceber o tom político e manifesto que permeia o texto em diversos momentos quando Cixous evoca a mudança que deve ocorrer através de uma escrita feminina, como por exemplo: “É preciso que ela [a mulher] se escreva, porque é a invenção de uma escrita nova, rebelde que, quando chegar o momento da libertação, lhe permitirá realizar as rupturas e as transformações indispensáveis na história (…)” (1975, p. 51).

“Mulher”, ou “escrever a mulher”, no manifesto de Cixous se torna uma performance textual, uma espécie de vocabulário na escrita que rompe com as normas falogocêntricas no âmbito do texto. O que Cixous defende é a retomada e o aparecimento do que ela vê como um apagamento das mulheres e das figuras femininas das páginas da história: “ato que marcará igualmente o momento da mulher tomar a palavra, e, assim, sua entrada estrondosa na história, que sempre se constitui com base no seu recalque. Escrever para forjar para si uma arma antilogos” (1975, p. 52 – todos os grifos fazem parte do texto). Nesse sentido, ler “O Riso da Medusa” (1975) sob a chave do texto manifesto é compreender que ele responde e engaja com as tensões sociais e com os questionamentos encabeçados pela filosofia da segunda metade do século XX, além de compactuar com a descrença nas grandes instituições representantes da educação, da lei, da religião e da política. “O Riso da Medusa” (1975) dá dimensão feminista, política e material a conceitos filosóficos como o “Logocentrismo” de Jacques Derrida, no qual ele afirma que a sociedade ocidental é puramente erigida sobre a palavra – ou logos – falada e masculina, o que evidencia como o anseio e a criação de uma escrita feminina se tornam a semente de mudança e transgressão para Cixous.

Entretanto, não podemos nos esquecer que a ficção faz parte dessa escrita revolucionária do que Cixous defende como escrita feminina, e sendo assim, como afirmado pela própria autora nesse e em outros textos, é um “não-lugar”, um espaço sem limites, e logo, sem identidades fixamente demarcadas. Este é o argumento que vemos em seu texto “Prénoms de Personne” (1974), por exemplo, ou em tradução livre, “Primeiros nomes de Ninguém”. Nele, Cixous afirma que a ficção seria a instância do que ela chama de plureal, ou o “mais-que-real”, isto é, uma instância que ultrapassa os limites representacionais da realidade e das identidades fixas. Portanto, nessa escrita – mais especificamente, na escrita feminina – não haveria lugar para um “eu” egocêntrico e autocentrado no “não-lugar” da ficção, pois tal voz narrativa (masculina) e sua sentença não estariam comprometidas em expressar aventura, vida e desejo, mas apenas em consumir tudo aquilo que fosse outro de si mesmo, estando assim relacionada à própria morte. Nesse sentido, em “Prénons de Personne” (1974), Cixous estabelece que a escrita de “Ninguém”, ou Personne em seu francês original, exala vida, pois permite a multiplicidade, em oposição à da “Grande Propriedade”, ou Propre, que apenas aprisiona e mata o outro. Curiosamente, a palavra francesa Personne pode ser usada para significar tanto “ninguém” quanto “pessoa”. Quando carrega o significado de “pessoa” é substantivo feminino, precedido e marcado pelo artigo feminino La. Poderíamos, assim, estabelecer uma conexão entre a impessoalidade de ninguém e  a individualidade da sentença feminina.

Dessa forma, ler “O Riso da Medusa” (1975) como manifesto implica perceber que “escrever a mulher” como performance textual é a tática política que Cixous emprega em direção a uma escrita feminina que busca atingir a impessoalidade da ficção, a ser o corpo que vai carregar as palavras de Personne para combater a escrita opressora de Propre, masculina, que se apropria e apaga tudo o que não é o mesmo de si. Acredito que tais nuances de leitura sejam necessárias para apreender a complexidade e profundidade da escrita Cixousiana que nos leva a encarar o papel da escrita e da ficção como alternativa para a lei da gramática masculina.

 Assim como a própria ficção, que escapa da realidade representacional para um “não-lugar”, onde a subjetividade de ninguém vira a voz heterogênea de todos, a escrita de Cixous também é múltipla. O aspecto manifesto, político e performático de “O Riso da Medusa” (1975) é apenas uma das facetas que sua escrita imprime. É empolgante pensar que uma miríade de textos Cixousianos ainda existem por aí para ser descoberta pelo público leitor brasileiro, e eu, como leitora e escritora, no espaço sem limites da nossa coluna, estarei aqui para desbravá-los com todos vocês que ousarem se lançar nesse abismo da ficção.

Referências:

CIXOUS, Hélène. First Names of No One. In: CIXOUS, H. SELLERS, S. The Hélène Cixous Reader.  Ed. Susan Sellers. London: Routledge, p. 37-46. 1994 [1974].

CIXOUS, Hélène. O Riso da Medusa. Trad. Natália Guerellus. Raísa França Bastos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, [1975].

REGARD, Frédéric. SEGARRA, Marta. CIXOUS, Hélène. Meduse en Sorbonne. In: Le Rire de la Méduse: Regards Critiques. REGARD, Frédéric. REID, Martine (Orgs). Paris: Éditions Champion, p. 133 – 156. 2015.

REID, Martine. Le Temps du ‘Rire de la Méduse”. In: Le Rire de la Méduse: Regards Critiques. REGARD, Frédéric. REID, Martine (Orgs). Paris: Éditions Champion, p. 11 – 22. 2015.

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