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O emo como movimento cultural: uma breve análiseLeitura em 11 minutos

Emo pode parecer uma palavra oca, dirigida a certas estéticas e sentimentos de maneira irregular, evocando mais a relação consequencial entre bandas, estilos de roupa e produtos culturais do que as técnicas e os sentidos das canções  – especialmente ao ser usada para além dos seus primeiros anos. Ao mesmo tempo, a sua herança do punk hardcore ainda pode se perceber continuada em meio às novidades. Essa noção reflete a fala de Pete Wentz, baixista do Fall Out Boy, sobre o chamado softcore: “Somos os meninos do hardcore que fazem música pop”. Nesse sentido, a fim de descobrir a natureza do que é apresentado como Emo ou softcore, e, assim, reencontrá-lo em uma década diferente daquela da entrevista acima, as canções e os seus significados servirão de arqueologia. Além disso, a natureza confessional das letras e personas de alguns dos artistas marcadores do softcore pode esconder verdades a respeito das representações do eu-lírico (ou cancional) e do eu-biográfico por trás dele na contemporaneidade. 

Sendo o texto de performance (tais como letras de canção, poema, roteiro de peça) concebido como inseparável da performance a qual ele é atado, percebem-se as letras e os seus significados como co-dependentes dos aspectos musicais e performáticos da canção. Por isso, ao mesmo tempo em que o eu-cancional servirá de foco nesta análise, os vocais e o papel intersemiótico deles não poderão ser descartados. Tendo isso em mente, recorda-se do texto de Richard Middleton (2000), no qual se encontra que o canto no rock é menos canto e mais voz; seja conversativo, contando de fato as histórias imbuídas na canção, ou gutural, as gritando, berrando, gemendo ou rosnando, sempre com emoção e utilizando a garganta em sua totalidade como o meio de comunicação. No punk, o desuso de uma estrutura lírica tradicional transparece como a transgressão anti-sistêmica; e da zorra verbal e sua vulgaridade podem emergir, além da recusa a arte do canto, uma atenção maior ao uso da voz como o recipiente poderoso das letras e da pessoa que as canta, assinalando aquilo que Roland Barthes chamou de grão da voz (1981). 

Em canções onde o hardcore foi interseccionado, seja emo ou outra versão pop do hardcore, a relação dos vocalistas com seu papel foi mantida. Além da marcação dos rápidos riffs de guitarras e bateria, a voz de Matt Pryor de The Get Up Kids no que foi considerado o álbum pioneiro no emo, Something to Write Home About (1999), surge como gritos juvenis concentrados na própria potência vocal de ecoar o sentimento de impotência. Da mesma maneira, mais tarde quando versões do emo e do pop-punk ganham o nome Midwest ou West/East Coast Emo ou mesmo Emo Revival na década de 2010, cantores como Bren Lukens do Modern Baseball ou Brian Sella do The Front Bottoms marcarão a ressurgência do gênero ao “cantar mal” – não gritando, como seus antepassados, mas meramente contando (mais do que cantando) suas histórias em tons por vezes desafinados. 

Adicionalmente, pode se pensar na mudança entre os dois tipos como a imagem de “emoções explodindo pela guitarra elétrica e pela garganta dedicada do cantor” se alongando para dar espaço a inclusão das emoções vazando de um violão acústico e uma voz que as canta como se falando ou murmurando sozinho. A escala entre esses dois extremos poderia talvez ser a imagem de um encontro selvagem entre as performances de Elliott Smith e Aimee Mann na década de 1990, com aquelas traduções acústicas de canções hardcore de Kurt Cobain e Courtney Love na MTV durante a mesma época. 

Mais importante ainda, se faz notar a performance – que é maior que a soma combinatória das vozes e da música, dos sentimentos e das palavras, dos corpos e os seus lugares – como um evento de significação social (Crook, 2003). Dentro desse quadro, as confissões outrora pessoais dos liricistas tornam-se manifestações públicas; hinos, gritos de ordem, preces. Nesse aspecto, sobressai outro apontamento de Richard Middleton sobre a persona do vocalista e a persona do eu-cancional e da manutenção de uma masculinidade branca específica do rock popularmente conhecido. No caso do Emo, essa figura, além de mantida por “meninos do hardcore”, é marcada por uma introspecção de um Eu enfraquecido – continuando a citação do baixista de Fall Out Boy, o chamado softcore foi a produção daqueles que “não aguentaram o hardcore”. Da mesma maneira que Wentz ri de si mesmo ao dizê-lo, uma contestação afetuosa mesmo com a auto-depreciação, o eu-cancional do emo reconhece a si mesmo diante do mundo. Nisso, a transgressão lírica das canções punks também pode ter desaguado, de modo que, não só a distância da forma fixa e a aproximação com o uso orgânico da voz foram continuados, mas também a repulsa política no cerne das canções. Desse jeito, temas aparentemente apolíticos como o amor e os sentimentos que os problemas com ele evocam, assim como as relações interpessoais de modo geral, poderão ser revisitados dentro do alcance confessional destas canções.

Por enquanto, devemos nos manter na relação destes vocalistas com o sentimento proposto pelas canções; neste caso, com os sentimentos de impotência e ruína em resposta às dinâmicas sociais. Retornando ao exemplo dado de The Get Up Kids e Fall Out Boy, que nos fornece duas bandas formativas de tempos diferentes deste tipo de pop-punk e cuja última é inspirada na primeira, pode-se ver tanto a intimidade e fragilidade das relações mostradas quanto a ansiedade para mostrar elas. Ao mesmo tempo, os dois grupos podem denotar um único período entre os meados da década de 1990 e os meados da década de 2000 e, desta maneira, um primeiro estágio na formação dessa espécie de softcore.

The Get Up Kids - Something to Write Home About (Disco Remember)
Rascunhos da capa do álbum Something to Write Home About (1999).

[Dessa forma, algo em Something to Write Home About (1999) pode servir de  suporte. Em My Apology, a derrota é sentida em razão do arrependimento de um mau-encontro daquilo que o eu-cancional deve corrigir em si mesmo com as expectativas do Outro (neste caso, “você”) para ele, como se mostra nos versos, “Sometimes, I can think to recite / Words that I read and rewrite” (“Ás vezes, eu consigo recitar / Palavras que leio e reescrevo”). Além de ser demonstrada uma dinâmica hierarquizada entre a pequenez do eu cancional e dominância da segunda pessoa sobre ele, são descritas as consequências interiorizadas disso no eu-cancional: a imposição do que é “certo” e “apropriado” a ele e a reação do que é “errado” e “inapropriado” nele quanto a isso, como expressam os versos iniciais,

You’ll be accepting my apology 

For taking things too seriously 

Sometimes, I’m old enough to keep routine

Sometimes, I’m child enough to scream 

(“Você terá que aceitar as minhas desculpas / por levar as coisas a sério demais / às vezes sou maduro o bastante para seguir a rotina / ás vezes sou criança o bastante para gritar”)

e a estrofe no pré-refrão, “My once-photographic memory / For recollection’s sake is failing me / I can’t remember for the life of me”(“minha memória uma vez fotográfica / pelo bem das recordações, me falha / eu não consigo lembrar pela minha vida”). Esses versos aprofundam ainda mais a inadequação do eu-cancional com o que ele deveria ser. É criada uma dicotomia onde um lado é o educado sobre que é socialmente adequado, como um roteiro que se familiariza com o tempo , enquanto o outro “se esquece”, retornando a uma infantilidade sem filtro e censura. Através dessa sutil retomada de controle do agir das emoções, embora na forma de um pedido de desculpas por elas, se obtém um “grito de criança” na boca do vocalista. Desta maneira, pode-se reconhecer que, sendo a contação de histórias uma maneira de reescrever o mundo, ao eu-cancional de My Apology ainda é reservada uma inferioridade em seu papel reescrito – como uma barreira auto-imposta, que, no entanto, ainda é atravessada. Ou seja, é no enfrentamento e na sobreposição dos problemas às relações interpessoais que é extraído e privilegiado o aprofundamento do eu-cancional de maneira que essa melancolia se exprime em moda auto-congratulatória. 

Nessa direção, o Take This to Your Grave (2003), álbum da banda mais nova, se destaca enfaticamente. Em Grand Theft Autumn / Where is your boy?, a inferioridade e impotência do eu-lírico se deve ao desejo dele por quem já é comprometido com outro parceiro masculino. Enquanto nesta canção pode ser visível o desejo do eu-lírico por este “você”, se fazem mais marcantes e frequentes as referências a ele mesmo e ao garoto titular neste triângulo amoroso. 

capa alternativa de "take this to your grave" (2003)
capa alternativa de “take this to your grave” (2003)

Como é salientado logo no verso inicial (que é cantado acapella, diferentemente do que se passa no resto da música),

 

Where is your boy tonight?

I hope he is a gentleman

Maybe he won’t find out what I know

You were the last good thing about this part of town

(“Cadê o seu garoto esta noite? / Eu espero que ele seja um cavalheiro / Talvez ele não descubra o que eu já sei / Você era a última coisa boa desta parte da cidade”)

Ao mesmo tempo que a dinâmica do objeto de desejo com seus dois pretendentes se deixa conhecida, a diferença entre eles dois são já apresentadas. O próprio par de versos do refrão, “Where is your boy tonight / I hope he is a gentleman” se apresenta como um comentário irônico e sutilmente desdenhoso da relação do garoto com sua amada. Nos dois versos seguintes é melhor revelado o motivo do seu apontamento: a relação do eu-cancional com a amada não é superficial como a do seu rival e, consequentemente, ele mesmo não é insignificante quanto este. O garoto rival não compartilha a mesma relação do eu lírico com “esta cidade” (a causa mais recorrente dos problemas das personas cancionais do gênero), tampouco como a preciosidade e a imparidade da amada. Nesse sentido, em relação ao seu rival, eleva-se o personagem do eu-cancional como distintamente atravessado por sofrimentos, aos quais esta desilusão amorosa se acrescenta. 

Na mesma moda que a dos seus predecessores, são os versos “You need him, I could be him /  I could be an accident, but I’m still tryin / And that’s more than I can say for him” (“você precisa dele, eu posso ser ele / eu podia ser um acidente, mas ainda tô tentando / e isso é mais do que eu posso dizer por ele”) que resumem a verdade triste, nua, crua mas auto-celebratória da canção. A narrativa do triângulo amoroso que condiciona a persona lírica a uma distância táctil do seu objeto de desejo é necessária para a exploração do personagem dele e para o prestígio dos seus sentimentos feitos de canção. Como ele mesmo admite, em seu humor auto-depreciativo,

Someday I’ll appreciate in value

Get off my ass and call you, the meantime, I’ll sport my

Brand new fashion of waking up with pants on

At four in the afternoon

(“Algum dia eu vou custar mais caro / sair do sofá e ligar para você / mas, por enquanto eu vou ostentar / a minha nova moda de acordar só de cueca / às quatro horas da tarde”).

Evidentemente, pode-se apontar que Fall Out Boy, mais nova e mais popular das duas, se apega afetuosamente a essa imagem que ambos compartilham. Isso não só se deve a inspiração e sua decorrente nostalgia que a banda emprega de outras como The Get Up Kids e de The Descendents, como também se manifesta na massificação dessa corrente. Por isso, além da banda se fortificar da nostalgia hardcore para construir sua nova imagem (tal como é a das suas canções), ela se tornou um ponto de referência para artistas e grupos musicais posteriores pelos quais o soft e o hardcore seriam sublimados, e o Emo se afastaria do seu sentido inicial. Dessa maneira, grupos como My Chemical Romance e Panic! At the Disco, ou Bring Me The Horizon e Blink-182, apesar da larga discrepância entre as canções um do outro, são hoje considerados pelo mesmo “gênero”.      

De toda maneira, as características do emo, do softcore e do hardcore que uniram esses discursos divergentes ainda contém digitais desse passado. É por conta da utilização e capitalização dele pela indústria musical que tornaram-se possíveis essas dinâmicas e desdobramentos. Assim, por se tratar de descendências contraculturais que permanecem ainda relativamente recentes, será possível encontrar comunidade na música pop de hoje com aqueles meninos do hardcore. Ultimamente, isso se deve a herança humana de todas essas narrativas de conviver em sociedade – por mais opressiva que esta ainda seja.

Publicado por

É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.

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