Emily Dickinson (1830-1886), famosa por sua poesia enigmática e pioneira, desafiou normas culturais com sua visão introspectiva, linguagem inovadora e estilo não convencional. Seu espírito perspicaz e sua exploração destemida da existência humana continuam a ressoar até hoje, transcendendo barreiras temporais com uma relevância contínua e uma percepção visionária. Considerada uma figura de grande importância na literatura norte-americana, a vida pessoal de Dickinson está intimamente ligada às suas obras. Muitos de seus poemas refletem seus sentimentos, experiências e visão de mundo. Em uma época em que vozes femininas eram silenciadas, seu trabalho irradiava uma modernidade que desafiava expectativas, inspirando gerações futuras de escritores.
Nascida em uma família de alta posição social, seu avô, Samuel Fowler Dickinson, era um importante advogado e um dos principais fundadores do Amherst College, em Massachusetts. Emily Dickinson era a segunda filha de Edward e Emily Norcross Dickinson, e desde cedo teve acesso a uma educação de qualidade, frequentando por um ano o South Hadley Female Seminary. Entretanto, sua permanência na instituição foi interrompida após sua recusa pública em declarar sua fé, situação que marcou sua vida. Sendo assim, a poetisa de Amherst se afastou da vida social convencional, optando por uma existência mais reclusa.
Além disso, no que diz respeito à saúde de Emily Dickinson, ao longo de sua vida, ela enfrentou uma série de desafios, incluindo problemas oculares. Esses problemas foram um dos motivos que a levaram a se recolher bastante em sua casa em Amherst, Massachusetts. Reconhecida por sua natureza reservada e introspectiva, muitos especularam sobre sua saúde mental, sugerindo que ela poderia ter enfrentado ansiedade ou depressão. No entanto, não existe um diagnóstico médico definitivo sobre sua condição mental, visto que ela viveu em uma época em que os transtornos mentais não eram tão compreendidos ou diagnosticados como são atualmente.
Sendo assim, Dickinson nunca se casou e manteve a maioria de suas amizades por meio de correspondências, incluindo sua cunhada Susan Dickinson e figuras literárias proeminentes como Samuel Bowles, Dr. e Mrs. J. G. Holland, T. W. Higginson e Helen Hunt Jackson. Após seu falecimento, sua família descobriu uma extensa coleção de quase 2000 poemas, revelando a profundidade de sua produção literária e consolidando seu lugar como uma das maiores poetisas da literatura norte-americana. As inúmeras correspondências que ela manteve ao longo de sua vida permanecem como uma fonte crucial de compreensão sobre sua vida e sua obra.
Dickinson, além de explorar corajosamente temas incomuns para a época, como identidade, natureza, mortalidade e lidar com a complexidade dos sentimentos humanos de maneira profunda, desafiou também estruturas convencionais com pontuação inovadora e quebras de estrofes, criando um ritmo e um fluxo únicos. Seu uso distintivo de travessões e reticências a destacou, desafiando as normas gramaticais tradicionais e convidando à reflexões mais profundas, adicionando uma distinção marcante à sua voz literária no século XIX, como observado em poemas emblemáticos como I’m Nobody! Who are you?, Because I could not stop for Death, A Bird came down the Walk e I cannot live with You. Neste texto, os quatro poemas mencionados serão explorados, destacando suas peculiaridades.
Sendo assim, ao analisar alguns de seus poemas, é possível perceber a influência dos anos em que viveu em reclusão na casa de sua família em Amherst, Massachusetts. Esta escolha de isolamento é um tema recorrente em suas obras, onde ela explora a solidão e a introspecção. Em seu poema I’m Nobody! Who are you? é interessante explorar os sentimentos de Dickinson:
I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?
Then there’s a pair of us!
Don’t tell! they’d advertise – you know!How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!
Suas palavras refletem seu sentimento de reclusão e sua identificação com ser “ninguém”. Ela parece sentir orgulho em ser desconhecida e estar fora do foco público, sugerindo que há uma liberdade para os que não buscam a fama. O aviso “Don’t tell! they’d advertise – you know!” indica um medo da exposição. Além de uma crítica implícita à sociedade que valoriza a notoriedade, e que poderia transformar essa identidade anônima em algo público, o que não seria, necessariamente, positivo. Somado a isso, a palavra “advertise” sugere uma comercialização da identidade e da privacidade.
A pergunta “Are you – Nobody – too?” indica a possibilidade de encontrar companhia na solidão. Parece haver uma sensação de alívio na descoberta de outro “Nobody”, sugerindo que a solidão pode ser compartilhada. “Then there’s a pair of us!” revela um senso de solidariedade e união entre os que se consideram outsiders ou reclusos. Nota-se um tom com ar conspiratório e secreto, como se Dickinson estivesse convidando o leitor a participar do clube exclusivo de “Nobodies”.
No poema, a solidão não é descrita como negativa. No contexto da vida de Emily Dickinson, que era conhecida por sua reclusão e seu estilo de vida reservado, o poema reflete sua própria visão da solidão como um espaço de liberdade pessoal e introspecção criativa. Para Dickinson, ser “Nobody” parece representar um refúgio contra as demandas e expectativas sociais, enquanto ela contrasta essa ideia com a noção de ser “Somebody” e estar em destaque, comparando-a à exposição de um sapo em seu pântano.
Ademais, Emily Dickinson era fascinada pela morte e pela ideia de imortalidade. Esta obsessão pode ter sido influenciada pelas numerosas perdas que sofreu durante sua vida, incluindo a morte de amigos e familiares. A família Dickinson estava associada ao Protestantismo Congregacional. Embora Emily Dickinson tenha sido influenciada pelo ambiente religioso de sua época, sua própria relação com a fé foi complexa e muitas vezes refletida em seus poemas, que exploravam dúvidas, questionamentos espirituais e a busca por significado. No poema Because I could not stop for Death, Dickinson personifica a morte como um gentil cocheiro que a leva em uma jornada:
Because I could not stop for Death –
He kindly stopped for me –
The Carriage held but just Ourselves –
And Immortality.We slowly drove – He knew no haste
And I had put away
My labor and my leisure too,
For His Civility –We passed the School, where Children strove
At Recess – in the Ring –
We passed the Fields of Gazing Grain –
We passed the Setting Sun –Or rather – He passed Us –
The Dews drew quivering and Chill –
For only Gossamer, my Gown –
My Tippet – only Tulle –We paused before a House that seemed
A Swelling of the Ground –
The Roof was scarcely visible –
The Cornice – in the Ground –Since then – ‘tis Centuries – and yet
Feels shorter than the Day
I first surmised the Horses’ Heads
Were toward Eternity –
A presença da “Imortalidade” sugere sua crença em uma vida além da morte. Essa personificação que ela faz da morte desafia a visão tradicional que enxergava na mortalidade algo temível e doloroso, apresentando-a, ao contrário, como uma figura benevolente. O uso da palavra “kindly” (gentilmente) sugere uma aceitação serena da morte, como se fosse um evento natural e esperado.
A linguagem do poema é calma e tranquila, sugerindo que o eu lírico aceita a morte sem resistência. A frase “Because I could not stop for Death – He kindly stopped for me” implica que a morte é inevitável e chegará independentemente de estarmos prontos para recebê-la. O poema brinca com a ideia de tempo. A jornada de carruagem parece atemporal, e a menção à “Imortalidade” reforça a ideia de uma existência que transcende o tempo. A morte não é apresentada como um evento repentino, mas como uma parte contínua da jornada da vida, sugerindo uma fusão entre o temporal e o eterno. Dickinson parece sugerir que a morte física não resulta no fim de tudo, mas em uma continuação da existência sob uma nova forma.
Em conexão com a temática explorada nos parágrafos anteriores, é interessante comentar sobre a exploração da natureza e espiritualidade. A observação da natureza foi uma fonte constante de inspiração para Emily Dickinson. Ela frequentemente encontrou significados profundos e espirituais no mundo natural, refletindo sua busca por entendimento e conexão com o divino. O poema A Bird came down the Walk nos permite explorar essa conexão:
A Bird came down the Walk –
He did not know I saw –
He bit an Angleworm in halves
And ate the fellow, raw.And then, he drank a Dew
From a convenient Grass –
And then hopped sidewise to the Wall
To let a Beetle pass –He glanced with rapid eyes,
That hurried all abroad –
They looked like frightened Beads, I thought,
He stirred his Velvet Head. –Like one in danger, Cautious,
I offered him a Crumb,
And he unrolled his feathers,
And rowed him softer Home –Than Oars divide the Ocean,
Too silver for a seam,
Or Butterflies, off Banks of Noon,
Leap, plashless as they swim.
Neste poema, Dickinson descreve uma cena simples da natureza com grande atenção aos detalhes. A interação entre o pássaro e a poetisa pode simbolizar a busca de Dickinson por compreensão, refletindo sua própria espiritualidade e conexão com o mundo natural. A ação do pássaro ao comer a minhoca remete a fragilidade da vida e a presença constante da morte na natureza. No entanto, esta fragilidade é parte de um ciclo maior de vida e renovação, um tema recorrente na obra de Dickinson. A espiritualidade aqui está ligada ao reconhecimento e à aceitação da mortalidade como parte da experiência natural.
O ato do pássaro comer a minhoca reflete o ciclo natural da vida, onde a morte de um é necessária para a sobrevivência de outro. Esta visão não é romantizada, mas apresentada como parte da ordem natural. O poema, ao registrar esse ciclo, sugere a aceitação e compreensão da inevitabilidade e da necessidade desse ciclo para a continuidade da vida. Dickinson encontra beleza e profundidade no comportamento cotidiano de um pássaro, sugerindo uma conexão íntima entre o mundano e o espiritual.
Para concluir a exploração das temáticas de algumas das obras de Emily Dickinson, o poema I cannot live with You é uma expressão poética que explora o amor profundo e a dor emocional que Emily sentia por Susan Gilbert Dickinson, sua amiga e cunhada, mas também a impossibilidade de uma união física e socialmente aceita entre elas na época:
I cannot live with You –
It would be Life –
And Life is over there –
Behind the ShelfThe Sexton keeps the Key to –
Putting up
Our Life – His Porcelain –
Like a Cup –Discarded of the Housewife –
Quaint – or Broke –
A newer Sevres pleases –
Old Ones crack –I could not die – with You –
For One must wait
To shut the Other’s Gaze down –
You – could not –And I – could I stand by
And see You – freeze –
Without my Right of Frost –
Death’s privilege?Nor could I rise – with You –
Because Your Face
Would put out Jesus’ –
That New GraceGlow plain – and foreign
On my homesick Eye –
Except that You than He
Shone closer by –They’d judge Us – How –
For You – served Heaven – You know,
Or sought to –
I could not –Because You saturated Sight –
And I had no more Eyes
For sordid excellence
As ParadiseAnd were You lost, I would be –
Though My Name
Rang loudest
On the Heavenly fame –And were You – saved –
And I – condemned to be
Where You were not –
That self – were Hell to Me –So We must meet apart –
You there – I – here –
With just the Door ajar
That Oceans are – and Prayer –
And that White Sustenance –
Despair –
Este poema é frequentemente interpretado como uma expressão do amor profundo e da dor emocional que a Dickinson sentia por Susan, mas também da impossibilidade de uma união física e socialmente aceita entre elas na época. Trata-se da impossibilidade de viver juntas de uma forma convencional devido às restrições sociais e, possivelmente, à orientação sexual das duas.
A relação entre Emily Dickinson e Susan Gilbert Dickinson foi complexa e multifacetada, e este poema parece expressar a profunda ligação emocional entre elas, apesar das circunstâncias que as separam. Há também um dilema existencial profundo. Dickinson parece expressar uma sensação de isolamento e desconexão do mundo exterior, intensificado pela impossibilidade de viver com a pessoa que ama.
Dickinson utiliza imagens vívidas e símbolos poéticos para transmitir suas emoções. Por exemplo, ela compara a ideia de viverem juntas com a vida e a morte, sugerindo que a separação delas é tão dolorosa quanto a morte, mas que se ficassem juntas seria como uma espécie de morte em vida, por conta da impossibilidade de aceitação social de sua relação e das dificuldades implícitas nesse preconceito. A forma do poema, com seus versos curtos e a rima irregular, reflete a intensidade emocional do texto. A linguagem é direta e concisa, mas ao mesmo tempo carregada de significado e emoção.
Assim, é possível pontuar que este poema é uma expressão poderosa de amor, dor e isolamento, tratando da complexidade das emoções e das relações humanas. É uma obra emblemática não apenas pela sua beleza poética, mas também pela sua profundidade emocional e sua relevância contínua para as questões de identidade, amor e aceitação. Além deste, há outros poemas que Emily Dickinson tenha dedicado a Susan, como: Wild Nights – Wild Nights!, I’m Wife—I’ve finished that, The heart asks Pleasure—first e He put the Belt around my life—.
Em resumo, a obra de Emily Dickinson é uma complexa mistura de sentimentos, experiências e reflexões profundas, tecida com inovação estilística e uma visão introspectiva que desafia as normas culturais de sua época. Seu relacionamento com Susan Gilbert Dickinson, explorado em vários poemas, revela a intensidade de suas conexões emocionais e intelectuais, destacando a profundidade de seus sentimentos e a singularidade de seu amor. Dickinson, ao explorar temas como identidade, mortalidade e a natureza, e ao usar uma linguagem e estilo inovadores, conseguiu criar uma voz literária única que ressoa até hoje. Sua vida reclusa, marcada por uma introspecção profunda, não impediu que seus poemas transcendessem as barreiras temporais, inspirando gerações futuras e consolidando seu lugar como uma das maiores poetisas da literatura norte-americana.
Referências Bibliográficas:
AMARAL, A. L. Emily Dickinson: uma poética de excesso. 1995. 533 f. Tese (Doutorado em Literatura Norte-Americana) – Universidade do Porto, Porto, 1995.
Emily Dickinson Museum. “Sobre Emily Dickinson.” Emily Dickinson Museum, https://www.emilydickinsonmuseum.org/about-emily-dickinson
Poets.org. “Emily Dickinson.” “I Cannot Live With You (640).” Poets.org, Academy of American Poets, https://poets.org/poem/i-cannot-live-you-640.
Poetry Foundation. “Emily Dickinson.” Poetry Foundation, https://www.poetryfoundation.org/poets/emily-dickinson
Sewall, R. B. “The Life of Emily Dickinson.” Harvard University Press, 1980.
Publicado por
Lívia Souza
Graduanda em Letras - Inglês na UERJ.