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Crise do piso salarial da Waterstones gera debate nas redes sociais

Na segunda quinzena de março, a rede britânica de livrarias Waterstones ocupou as manchetes de diversos jornais devido à publicidade gerada por uma petição assinada por mais de 6.000 pessoas demandando que a empresa pagasse a seus livreiros ao menos o chamado living wage1, algo como um salário mínimo suficiente, prática que atualmente não é observada. O elemento que acirrou a discussão, no entanto, não foi a petição em si, mas a resposta de James Daunt. O diretor administrativo da rede, amplamente creditado por ter resgatado a Waterstones de uma grave crise em 2011, alegou não ser financeiramente sustentável atender a esta solicitação.

A petição, que foi criada por funcionários da Waterstones e assinada por milhares de pessoas, deu origem a uma carta de apoio iniciada por Kerry Hudson e respaldada por mais de 1.300 escritores, entre eles David Nicholls, Sally Rooney, Michael Rosen e Val McDermid. A demanda apresentada na petição a James Daunt consiste em elevar o valor pago a livreiros para o padrão do living wage estabelecido no Reino Unido. Lá, pagar o salário mínimo suficiente significa oferecer ao funcionário uma taxa de £9 por hora trabalhada ou £10,55 na região da Grande Londres. A petição defende que:

Trabalhar por uma taxa de remuneração que está abaixo do living wage faz com que livreiros fiquem estressados, preocupados e com que tenham pouco tempo livre e energia para se dedicarem à compra de livros, à leitura e a acompanhar as novidades e tendências do setor. Todas estas são atividades que são realizadas fora das horas contratadas, e que muitos funcionários consideram ser (e são encorajados a considerar como) parte do seu papel.

Salário mínimo x salário mínimo suficiente

Cabe aqui uma pequena explicação acerca de o que o living wage representa no Reino Unido. O país conta com três referências principais de piso salarial básico. A primeira delas é o National Minimum Wage (NMW). Em termos gerais, ele exerce a mesma função que o salário mínimo no Brasil. A diferença principal, no entanto, é que o NMW é definido por horas de trabalho e subdivido em faixas etárias. Isto é, o salário mínimo aumenta progressivamente a cada faixa:

Faixa Etária Valor pago por hora
25+ £8.21
21-24 £7.70
18-20 £6.15
Abaixo de 18 £4.35
Taxa de aprendiz £3.90

 

O NMW é definido pelo governo após consulta a uma comissão independente chamada Low Pay Commission. Outra referência também determinada pelo governo é o chamado National Living Wage (NLW), instituído em 2016. Embora tenha introduzido a expressão living wage, o NLW não está, de fato, conectado aos custos de vida reais ou ao salário mínimo suficiente. Trata-se de uma nova terminologia que reforça regras já cobertas pelo NMW. Em termos gerais, ele estabelece que qualquer pessoa empregada que tenha mais de 25 anos de idade (e não se enquadre na categoria aprendiz em seu primeiro ano de trabalho) deve receber, obrigatoriamente, ao menos £8.21 por hora a partir de 1º de abril de 2019 (mês em que se inicia o exercício financeiro).

Por fim, o chamado living wage – que é reivindicado na petição dos funcionários da Waterstones e que podemos traduzir como “salário mínimo suficiente” – é uma taxa cobrada por hora de trabalho que tem como base o custo de vida real no Reino Unido. Ele é calculado pela Living Wage Foundation, uma organização independente. Por conta disso, ele não tem base legal. Como mencionado no início do artigo, o living wage recomendado para a realidade do Reino Unido é definido por um piso salarial de £9 por hora ou £10.55 por hora para trabalhadores que residam na região da grande Londres.

Enquanto O NLW é calculado pelo governo com base em uma proporção do nível mediano de rendimentos, o living wage é calculado de forma independente com base no valor que as pessoas de fato precisariam receber para se sustentar. Logo, o ponto defendido por funcionários da Waterstones é que, embora a rede não seja legalmente obrigada a pagar o living wage, o modelo atual dificulta a subsistência dos livreiros e precipita a evasão de membros da equipe.

Por conta disso, no dia 25 de março, Kerry Hudson, autora do celebrado Lowborn: Growing Up, Getting Away and Returning to Britain’s Poorest Towns, reiterou o pedido inicial ao publicar uma carta aberta a James Daunt, assinada por escritores em apoio aos funcionários da Waterstones. Nela, os escritores declaram esperar que Daunt “considere oferecer aos seus livreiros um reconhecimento financeiro digno da sua habilidade, paixão, experiência e trabalho árduo”. Hoje, 11 de abril, a carta já foi assinada por mais de 2.500 pessoas. 

Hudson apontou, ainda, que foi levado à sua atenção que “há uma preocupação por parte dos funcionários atuais sobre a possibilidade de um aumento salarial ser subsidiado por cortes de pessoal ou redução de horas”, destacando que os autores signatários jamais apoiariam esse desfecho para a situação. A carta se encerra com a declaração de que “uma empresa que não pode oferecer um salário digno aos seus funcionários sem demissões ou redução de horas não é um modelo de negócio viável”.

Em entrevista ao The Guardian, a autora declarou não ter se surpreendido com o apoio que a carta recebeu: “eu fiquei chocada, e acho que muitos outros também, ao saber que este não era o padrão na Waterstones. Embora eu entenda que é complexo administrar um negócio, me parece que fazer aqueles que trabalham na linha de frente terem que escolher entre – como um ex-funcionário me disse – ‘comida e passagem’, não pode ser correto.”

A resposta da rede

Embora a petição e a carta tenham dado origem a uma grande onda de apoio e diálogo nas redes sociais a respeito da situação dos funcionários da Waterstones, as críticas que se seguiram à resposta de James Daunt fizeram com que a discussão atingisse novas dimensões.

Em uma carta aberta em resposta a Hudson, o diretor administrativo disse concordar que os funcionários mereceriam um piso salarial melhor. Ainda assim, ele afirmou que, por enquanto, não seria possível atender ao pedido apresentado. Vale lembrar que após uma grave crise que quase a levou à falência, a Waterstones voltou a obter lucros há dois anos, em 2017. No entanto, Daunt declarou que com a margem atual, ainda não é possível elevar o piso salarial dos funcionários: “uma estrutura progressiva de salários com base no piso do living wage é altamente desejável. Se continuarmos a aumentar nossa rentabilidade, isso será possível.”

Em entrevista ao The Guardian, Daunt defendeu o sistema de escala progressiva de pagamentos atualmente adotado pela Waterstones, no qual os funcionários recebem aumentos de acordo com sua experiência e tempo de casa: “Se elevarmos o piso de forma realmente significativa, todo mundo em todos os níveis da empresa terá que receber um aumento, e aí vamos falir, o que não vai ajudar muito. Se tivéssemos um piso significativamente mais alto, teríamos que tirar esse dinheiro de livreiros mais experientes ou cortar gastos de outra forma dramática. Simplesmente não somos lucrativos o bastante para, com um toque de varinha, fazer chover dinheiro.”

O executivo também criticou a noção de que a incapacidade da empresa de pagar o living wage significa que a Waterstones não seja um negócio viável: “estão dizendo que seria melhor fechar as portas a manter a estrutura de pagamentos que temos agora? Para mim, a questão é a eficiência da estrutura geral de aumentos. Claro que você quer ter o melhor piso possível, mas é muito importante ter progressão de carreira e aumentos na empresa. É algo em que nós temos investido.” O empresário disse, ainda, que “ele jamais sugeriria que uma carreira na venda de livros é altamente lucrativa”.

Para reter os melhores e os mais talentosos livreiros, é preciso recompensá-los e nós os recompensamos da melhor maneira que conseguimos com o pagamento, mas nós os recompensamos principalmente com um emprego estimulante. Eu diria que nós fizemos bons avanços, que nos trouxeram a um lugar em que estamos seguros financeiramente, o que é bom, considerando o clima atual.

A repercussão

A resposta de James Daunt gerou uma avalanche de respostas e críticas nas redes sociais, especialmente no Twitter, onde sua observação sobre recompensar os funcionários “principalmente com um emprego estimulante” não foi bem vista em um cenário em que as pessoas que declararam apoio a petição inicial dos funcionários da Waterstones ou a subsequente carta aberta de Kerry Hudson se depararam com relatos de livreiros que tinham que optar entre alimentação e transporte. Isto é, não parece justo ou saudável romantizar a profissão diante de um panorama em que profissionais não conseguem ao menos manter uma subsistência digna a partir do seu trabalho.

Simon Key da Big Green Bookshop tuítou: “Eu passei 17 anos trabalhando para a Waterstones nas livrarias. Posso te garantir que TODO MUNDO que trabalha lá merece o living wage. E mais. Quando as pessoas me perguntavam o que eu fazia da vida, eu dizia que trabalhava na Waterstones, eu tinha orgulho disso. Realmente era/é um lugar fantástico para se trabalhar. Mas isso não deveria significar que as pessoas que trabalham lá deveriam fazer isso por amor. Elas devem ser recompensadas pelo trabalho incrível que fazem.”

Este ponto foi reiterado pelo editor Scott Pack, que expressou sua opinião após recomendar a leitura da thread publicada por Chris McCrudden (que vamos discutir a seguir): “Há muitos pontos razoáveis sendo levantados sobre as faixas salariais da Waterstones e sim, salários de entrada no varejo raramente ficam muito acima do salário mínimo, algo que as pessoas que se propõem a ocupar esses postos sabem… mas sugerir que ter um emprego estimulante deve ser visto como uma recompensa suficiente é algo tolo e insensível de se dizer. Sempre ouço de livreiros que é esperado que eles cumpram muitas horas extras não pagas. Se Daunt sabe disso, os comentários dele são mais irritantes ainda. Se ele não sabe, então ele recebe um salário bem alto para não saber o que se passa nas lojas dele.”

Para além desse ponto, muitos questionaram a ideia de que a estrutura de progressão de carreira poderia, por si só, assegurar que a Waterstones seria capaz de reter funcionários talentosos. Afinal, não parece razoável supor que muitas pessoas competentes provavelmente desistem da Waterstones nos estágios iniciais da carreira ao receber ofertas de emprego que lhe ofereçam uma situação financeira mais segura? Quanto talento a empresa não perde ao não garantir que seus funcionários serão capazes de se manter com os salários oferecidos?

Por fim, alguns usuários do Twitter criticaram o contraste entre os salários e bônus anuais dos altos executivos da rede e a declarada incapacidade da empresa de pagar salários mais próximos da demandas financeiras básicas dos funcionários que atuam nas lojas. É esta a questão que a thread do escritor Chris McCrudden explora com riqueza de detalhes, ilustrando seus tuítes com gráficos e dados disponibilizados pela própria empresa.

McCrudden inicia sua thread2 com a ressalva de que embora “sem James Daunt, a Waterstones provavelmente teria entrado em colapso”, o que foi dito pelo executivo em sua entrevista ao The Guardian era problemático.

Ele aponta que embora a Waterstones não seja obrigada a divulgar publicamente sua estrutura salarial, ela tem que publicar os indicadores de disparidade salarial entre homens e mulheres e que “de acordo com os próprios números da Waterstones, os funcionários senior na matriz estão levando para casa a maior parte do dinheiro”. Os dados acessados e disponibilizados por McCrudden em seu Twitter revelam que embora a Waterstones se declare incapaz de acomodar no orçamento uma elevação no seu piso salarial, ela “consegue acomodar pagamentos de bônus muito generosos aos diretores do conselho”.

Acessando as declarações da empresa, o escritor averiguou que “no ano financeiro que se estendeu até abril de 2018, a rede pagou a seus diretores £2,000,000” e que, em 2016, “a Waterstones pagou um bônus no valor de £1,2 milhões para um diretor não identificado”. Essas informações levaram McCrudden a concluir que “James Daunt é generosamente recompensado por seus esforços em mudar o rumo da Waterstones”, algo que o autor do tuíte considerou “louvável”. No entanto, ele frisou que, diante dos dados financeiros reais da rede, a afirmação de Daunt de que “a principal atração do livreiro deveria ser ‘um trabalho muito interessante’” enquanto ele próprio recebe “um bônus de 7 dígitos é, na melhor das hipóteses, desonesta”.

McCrudden também divulgou um gráfico que demonstra que, embora Daunt tenha afirmado que um aumento do piso salarial da rede causaria um efeito cascata, ocasionando também o aumento do salário de altos funcionários, tais aumentos, na realidade, já acontecem. Ele concluiu dizendo:  “Não vejo problema algum em pagar bem as pessoas. Daunt fez um bom trabalho. Mas dizer que não há dinheiro para pagar aos trabalhadores da linha de frente o suficiente para viver é indefensável. O trabalhador não está lá para subsidiar uma empresa não econômica. Isso não é um modelo de negócio sustentável.”

O saldo da crise

O que a polêmica em torno da crise salarial da Waterstones expõe são as consequências, no nível humano, das oscilações que marcaram o agravamento da crise da rede e as estratégias financeiras e econômicas que possibilitaram sua recuperação. Embora a Waterstones tenha, de fato, sofrido uma mudança de rumo radical após a entrada de James Daunt (com centenas de empregos sendo preservados nesse processo), ainda assim muitos funcionários não têm sua subsistência assegurada pelo salário pago por suas horas de trabalho.

Além disso, a entrevista de Kerry Hudson ao The Guardian revelou que muitos  funcionários temem os efeitos negativos que suas reivindicações podem causar. Em meio a esse debate, tem sido essencial o poder exercido pelas redes sociais no sentido de divulgar a demanda dos funcionários e facilitar uma troca de informações de forma mais transparente. O post principal da thread de Chris McCrudden, por exemplo, foi retuitado quase 100 vezes, e teve quase 200 curtidas.

O debate prossegue: embora Daunt tenha procurado encerrar o assunto com sua entrevista, os dados expostos por McCrudden e por tantos outros usuários do Twitter engajados com a questão salarial dos livreiros da Waterstones impede que a página seja realmente virada por enquanto.

Aqui do Brasil, onde o agravamento da crise no ramo das livrarias também afetou as grandes redes, com a Saraiva entrando com um pedido de recuperação judicial no fim do ano passado e a Livraria Cultura fechando suas lojas no Rio de Janeiro, seguimos acompanhando com interesse a discussão em torno de problemas graves que foram omitidos durante as comemorações do recente crescimento do setor no Reino Unido. Em uma próxima discussão, abordaremos estratégias adotadas por livrarias britânicas independentes que utilizam a internet e as redes sociais a seu favor, se desviando da ameaça representada pelos gigantes do varejo online como a Amazon.

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