Literatura Inglesa Brasil

Coisas tangíveis

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
(Memória)

 

Pedrinha miudinha
de Aruanda ê
Lajedo tão grande

(Ponto de Umbanda / Maria Bethânia)

 

“Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria” (Gil, 1979), no entanto a leitura de autoras de língua inglesa (que começou pela ansiedade de saber o que ia acontecer no próximo Harry Potter, naquele insuportavelmente longo hiato entre o lançamento do Cálice de Fogo e da Ordem da Fênix, e espraiou-se por  Jane Austen, Chimamanda Adichie, Toni Morrison, Sally Rooney, Margaret Atwood, Naoise Dolan, Bernardine Evaristo, Emily Brontë, Charlotte Brontë, Anne Brontë, Elizabeth Gaskell, Candice Carty-Williams, Ali Smith, George Eliot, Otessa Moshfegh, Rachel Cusk, Yomi Adegoke) me convenceu facilmente do contrário.

Um dia, imaginei também que em algum ponto do meu percurso de leitor ia querer ler Virginia Woolf (grande ausente no longo parêntese acima), comprei o Complete Novels vermelho de capa dura, guardei na estante, esperei o momento, cheguei à conclusão posterior de que se lesse seria no kindle, dei o livro para uma pessoa querida da área de literatura e segui.

O momento e a autora vieram, como tantas aqui citadas (quase todas) do pó de estrelas que irradia o projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil. Em minha segunda participação no Clube do Livro (que já tem mais de 40 edições), acho que em novembro de 2020, li Ao Farol (To The Lighthouse), claro que amei, li logo em seguida Mrs. Dalloway, que amei ainda mais e segue sendo meu favorito, fiz um minicurso com a brilhante Patrícia Marouvo sobre este último, fui ler Um Teto Todo Seu, que transforma um leitor, principalmente se for um e não uma, As Ondas, Entre os Atos, e agora os contos completos na leitura coletiva  em andamento (o título da edição em inglês, The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf – a ficção mais curta – tem um charme a mais)

Virginia Woolf tem (ao menos para mim tinha) fama de escritora difícil, complicada, hermética. Minha experiência de leitura de suas obras até aqui tem sido outra, talvez por vir acompanhada de explicações e interpretações em cursos, conversas, comunicações, lives. Mas foi paixão à primeira leitura, muito pela força concreta e etérea da linguagem de sua escrita). De qualquer forma, fico feliz em me identificar como um leitor comum (no sentido de não ser da academia – ainda que mantenha com ela um flerte constante) da obra da autora. Como ela diz em seu ensaio The Common Reader (O Leitor Comum):

“Ele lê para o próprio prazer e não para transmitir conhecimento ou corrigir a opinião de ninguém (1). Acima de tudo ele é guiado por um instinto de criar por si mesmo, a partir das miudezas que coleciona (2), algum tipo de obra completa: o retrato de um homem, o esboço de uma era, uma teoria da arte de escrever. Ele jamais cessa de esbarrar em algum tecido decrépito e frágil que pode lhe dar a satisfação temporária de parecer o suficiente com o objeto real, a ponto de permitir o afeto, o riso, e argumentos.”

(Woolf, 1925, traduzi)

Claro que, como em quase tudo, há uma ressalva: “Sou um homem comum / mas o meu coração de poeta / projeta-me em tal solidão / que às vezes assisto a guerras e festas imensas / sei voar e tenho as fibras tensas / e sou um” (Veloso, 1983; 2019)(3)

Foram esses versos que me assaltaram ao ler a escrita absurdamente cinematográfica da abertura do conto “Solid Object”s (Objetos Sólidos) (Woolf, 1920). É interessante notar que a própria Virginia Woolf escreveu mais tarde um ensaio sobre a então ainda incipiente arte do cinema, em que ao falar de coisas (seres, objetos) mostrados pelo cinema, conclui:

“Eles se tornaram não mais bonitos, no sentido em que as pinturas são bonitas, mas, como dizê-lo? (nosso vocabulário é desgraçadamente insuficiente) mais reais, ou adquiriram uma realidade diferente daquela que percebemos na vida cotidiana. Nós os vemos tais como eles são quando nós não estamos ali. Nós vemos a vida tal como ela é quando nós não temos nela nenhuma participação.”

(Woolf, 2015, tradução de Tomaz Tadeu)

Nada nessas leituras anteriores ou na convivência com woolfianos queridos (Lucas e Jane, são vocês) havia me preparado para os dois primeiros parágrafos do conto, que parecem um trecho de roteiro, já com direção e fotografia prontas, nem precisa filmar. Ouso traduzi-los, porque faz parte da diversão de ler em inglês, para quem gosta de escrever:

“A única coisa que se movia no vasto semicírculo da praia era um pontinho preto. Ao se aproximarem da estrutura de espinha e  costelas do pesqueiro abandonado, ficou aparente, por uma certa atenuação em seu negrume, que esse ponto possuía quatro pernas; e momento a momento tornou-se mais evidente que era composto pelas pessoas de dois jovens. Mesmo contornados contra o fundo de areia, havia neles uma vitalidade evidente; um indescritível vigor na aproximação e afastamento dos corpos, por mínimos que fossem, que proclamava a existência de alguma discussão violenta brotando das minúsculas bocas das cabecinhas. Tal fato era corroborado, olhando mais de perto, pelos golpes constantes de uma bengala do lado direito. ‘Você quer me dizer… Você realmente acredita…’ era o que parecia afirmar a bengala do lado direito perto das ondas, enquanto cortava longas tiras na areia.

‘Dane-se a política!’ brotou claramente do corpo à esquerda, e, ao serem pronunciados essas palavras, as bocas, narizes, queixos, bigodes, boinas de tweed, botas de couro, casacos de caça e meias xadrez dos dois falantes tornaram-se mais e mais claros; a fumaça de seus cachimbos ergueu-se no ar; nada era tão sólido, tão vivo, tão duro, vermelho, hirsuto e viril quanto esses dois corpos, por milhas e milhas de mar e dunas.”

(Woolf, 1920, traduzi)

Essa cena, povoada de imagens intensas, introduz os personagens, ainda não nomeados mas já caracterizados como viris, sólidos, cheios de uma energia masculina. O conto se desenrola e John, que havia dito “dane-se a política”, e que, sabemos depois, era candidato ao Parlamento, encontra enterrado na areia um pedaço de vidro liso, verde, desgastado pela erosão dos tempos e que funciona como uma pedra de toque para uma transformação gradual, porém integral em sua vida (inclusive se afastando do ideal masculino de sucesso na carreira). Após levar para casa o pedaço de vidro, ele começa a sentir-se atraído por outros objetos sólidos que

“o lembravam do pedaço de vidro. Qualquer coisa, desde que fosse um tipo de objeto, mais ou menos redondo, quem sabe com uma chama mortiça no fundo de sua consistência, qualquer coisa – louça, vidro, âmbar, pedra, gude – mesmo a suave forma de um ovo de pássaro pré-histórico lhe servia.”

(Woolf, 1920, traduzi)

Ele abandona a política e dedica-se, gradualmente a princípio e cada vez com mais afinco e obsessão, à procura de outros objetos sólidos perdidos nas ruas de Londres, vivendo em função disso, para pasmo de Charles, outro jovem da cena inicial na praia. Ele estranha a coleção desses objetos sobre a lareira do amigo ao visitá-lo e tenta consolá-lo pela perda das eleições.  Nesse momento dá-se o diálogo incomunicável e incomunicado em que John fala da procura do objeto sólido perfeito, e Charles do abandono da política:

“‘O que fez você desistir de tudo de uma hora pra outra?’

‘Eu não desisti.’

‘Mas você não tem nem sombra de uma chance agora’

‘Aí eu não concordo com você.’, disse John, com convicção. Charles o olhou e sentiu-se profundamente desconfortável; as dúvidas mais extraordinárias o tomaram de assalto. Ele tinha a estranha sensação de que falavam de coisas diferentes.”

(Woolf, 1920, traduzi)

A busca de John pela solidez nos fragmentos abandonados, nos restos da vida cotidiana, pode ser vista em contraponto com a política ordinária, em sua dimensão retórica, feita de palavras ditas ao vento, incorpóreas, abstratas. Claro que uma busca exercida nos limites, ou mais propriamente, além dos limites, da lucidez do mundo e da vida comuns.

Uma curiosidade que a leitura do livro digital permite observar com muito mais facilidade: ao pesquisar o título do conto nas Obras Completas, encontrei a expressão “solid objects” no texto de As Ondas, Os Anos, Roger Fry: uma biografia e Fases da Ficção, este último publicado na coletânea de ensaios Granito e Arco-Íris.

Granito e arco-íris, duas imagens não opostas mas complementares, o extremamente concreto e o etereamente abstrato. Ouvi falar dessa imagem pela primeira vez no I Encontro Literatura Inglesa Brasil, provavelmente em alguma fala do Professor Davi Pinho, e me fascinou de imediato (como um frame de cinema?).

Agora, ao ler o conto, vi uma relação entre a coleta dos objetos sólidos, com o intuito de dar algum sentido concreto ao mundo (o conto é escrito logo após a I Guerra Mundial, no alvorecer de um mundo destruído), e a busca do leitor comum por textos, romances, contos, ensaios, poemas, “alguma rua que me dê sentido / em qualquer cruzamento / acostamento / encruzilhada” (Antunes, Ruiz, 1994).

Retornando à epígrafe, cada fragmento, pedaço, caco, seixo, pedrinha miudinha, “migalha, lasca, naco, grão, molécula de pão” (Antunes; Gonçalves; Azevedo, 2006), verso, estrofe, refrão, sentença, parágrafo, post, mensagem é um cisco escrito ou lido a mais nessa tentativa de construir o próprio monte de onde se enxerga a vida, esse lajedo imenso.

E para encerrar esse fragmento, deixo aqui outro desses objetos a um tempo sólidos e mais leves que o ar (4): um poema meu, sobre ler livros e ler o mundo, agradecendo ao recipiente da dedicatória no título, Lucas Leite Borba, pelo curso A Arquitetura de Um Teto Todo Seu, pela indicação dos ensaios O Cinema e O Leitor Comum, pela comunicação sobre “The Mark on the Wall” (A Marca na Parede) no I Encontro Literatura Inglesa Brasil, pelos directs e mensagens de WhatsApp, e pela companhia na experiência/aventura única e múltipla da leitura de Virginia Woolf.

 

UM SONETO PRO LUCAS

passam as páginas
de não-lidas para lidas
de zero a cem por cento
de horas faltantes
a quase nada e agradecimentos
passam as vidas na calçada
e não as vemos
enquanto escrevemos
nossos romances por dentro
sendo a um tempo
protagonista anti-hero
leitor e crítico
           e o perfume da tinta
           emana dos pixels

 

 

NOTAS

(1) Como tanto eu quanto a UERJ estamos em Vila Isabel ou na fronteira, cito Noel Rosa (1954): “a Vila não quer abafar ninguém / só quer mostrar que faz samba também”.

(2) Tradução bastante livre desse trecho, totalmente influenciado pelos objetos sólidos do conto. O texto original diz “[…] out of whatever odds and ends he can come by”.

(3) O Peter Gast que dá título à canção é o pseudônimo criado por Nietzche para Johann Heinrich Köselitz, músico e seu amigo, em mais um “entrecruzamento, acostamento, encruzilhada” (Antunes; Ruiz, 1994) da literatura com as canções, da palavra cantada com a palavra escrita. E os autores mencionados na citação da nota se expressam “escrevendo” as duas palavras, a escrita e a cantada .

(4) Então / Senti que o resumo / É de cada um

Que todo rumo / Deságua/ Em lugar comum

[…]

Essa canção / Me rói feito um mistério / Essa tristeza dói

Meu fingimento é sério / Como aéreo / É sempre todo amor

(Cacaso; Baeta, 1994)

 

REFERÊNCIAS

Andrade, Carlos Drummond de. Memória. In: ______. Antologia Poética. 69. ed. Rio de Janeiro: Record, 2022.

Antunes, Arnaldo; Ruiz, Alice. Socorro. In: Eller, Cássia. Cássia Eller, 1994.

Antunes, Arnaldo; Gonçalves, Helder; Azevedo, Mariana. Qualquer. In: Antunes, Arnaldo. Qualquer, 2006.

Bethânia, Maria (intérprete). Pedrinha Miudinha. In: ______. Dentro do Mar Tem Rio (ao vivo), 2007. Ponto de Umbanda, domínio público.

Cacaso; Baeta, Lourenço. Feito Mistério. In: Boca Livre. SongBoca, 1994

Gil, Gilberto. Super-homem, a canção. In:______. Realce, 1979.

Rosa, Noel. Palpite Infeliz. In: Almeida, Aracy de. Sambas de Noel Rosa, 1954.

Veloso, Caetano. Peter Gast. In: ______. Uns, 1983.

______. ______. In: Veloso, Caetano; Sacerdote, Ivan. Caetano Veloso & Ivan Sacerdote, 2019.

Woolf, Virginia. The Cinema, 1926. In: _____. The Captain’s Bed and other essays. Hogarth, 1950. Publicado em The Complete Collection.

______. O Cinema. In: ______. O Sol e o Peixe: prosas poéticas. Seleção e tradução Tomaz Tadeu. Autêntica, 2015.

______. The Common Reader, 1925. In: ______. The Common Reader. Hogarth, 1951. Publicado em The Complete Collection.

______. Solid Objects, 1920. In: ______. The Complete Shorter Stories of Virginia Woolf. Introdução e notas de Susan Dick. Harcourt, 1989.

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