Maya Angelou (1928-2014) foi uma figura multifacetada: dançarina, poeta, ativista, editora e escritora. Deixou um legado inegável à literatura dos Estados Unidos com suas contribuições em prosa, poesia e ensaios, acumulando inúmeras homenagens, títulos honorários e prêmios. Suas experiências de vida certamente a moldaram, e a partir da superação pessoal, Angelou inovou o gênero autobiográfico, publicando uma série de sete livros que narram episódios de sua vida — dentre eles, o tão aclamado I Know Why the Caged Bird Sings (1969), que acompanha sua infância e juventude. A escrita autobiográfica da autora aparece não apenas como um símbolo de sua jornada pessoal, mas também contribui para reflexões a respeito de identidade e dialoga com questões pertinentes da subjetividade feminina negra. Ao ler a obra de Maya, fica evidente a habilidade da escritora de articular vivências e dores pessoais com questões que ecoam e tocam de forma tão poética e significativa um coletivo: não é à toa que dez anos depois de sua morte, suas palavras ainda ressoam em reflexões contemporâneas. A escritora brasileira Conceição Evaristo destaca:
“Ler Maya Angelou é mergulhar na vida estadunidense do início do século XX com suas problemáticas raciais, e acompanhar a trajetória de mulher que, apesar de tanto sofrimento, de tanta violência sofrida, ainda encontrou forças para se comprometer com a luta dos Direitos Civis dos Negros Americanos. Ler Eu sei por que o pássaro canta na gaiola é entender, também, como a escrita, como a literatura pode ser um meio, um exercício de reflexão e de sublimação da dor.” (Evaristo, 2018, p.10)
Angelou, que passou a infância em uma zona rural no sul dos Estados Unidos, cresceu observando e vivenciando o racismo e as inúmeras formas de opressão que assolaram a população negra. No início dos anos 50, antes mesmo da publicação de Caged Bird (1969), se mostrou figura ativa no Movimento pelos Direitos Civis e lutou ao lado de personalidades como Martin Luther King Jr. e do romancista James Baldwin; em sua trajetória, também morou no Cairo e acompanhou o processo de independência dos estados africanos. Ao observarmos sua história, é difícil afirmar que o discurso de Maya Angelou possua qualquer pretensão de neutralidade, afinal, foi através da literatura que a escritora potencializou vozes e estratégias de sobrevivência da população negra em meio a um ambiente hostil. Em My Guilt, evoca algumas dessas vozes que lutaram ativamente pelos Direitos Civis nos Estados Unidos:
“My crime is “heroes, dead and gone,”
dead Vesey, Turner, Gabriel
dead Malcolm, Marcus, Martin King.
They fought too hard, they loved too well.
My crime is I’m alive to tell.”
(Angelou, My Guilt, 1994, p.56)
Desde a infância, sendo uma menina negra no sul dos Estados Unidos, a escritora percebeu as intersecções que a atravessavam. Mais tarde, ao evidenciar questões centrais da condição complexa de mulheres negras em suas obras, Angelou materializou de forma abrangente suas vivências através de narrativas criativas e poéticas. Em Phenomenal Woman, por exemplo, celebrou sua força e beleza, enquanto em Woman Work abordou a exaustão das responsabilidades que envolvem a rotina doméstica de uma mulher. E sobre seu processo de escrita, enfatizou: “Escrevo para a voz negra e para qualquer ouvido que possa ouvi-la. (…) Escrevo porque sou uma mulher negra, ouvindo atentamente ao seu povo que fala.” (Angelou, 1984, p.3-4, apud Rodrigues, 2023, p.42). A retórica de Maya, mesmo muitas vezes partindo de verdades que seriam absolutamente subjetivas, como em suas autobiografias, criou um senso de identificação ao tocar em discussões que preocupavam uma comunidade inteira.
O poema Still I Rise (Ainda assim eu me levanto), um dos mais aclamados de Angelou, ressalta a escrita da autora como uma potente forma de difundir suas ideias. Sua ressonância até a contemporaneidade subverte toda a lógica de disseminação de discurso centralizada na branquitude, contrariando a deslegitimação de um povo explorado por séculos e mostrando toda sua resiliência:
“Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.”
(Angelou, Ainda assim eu me levanto, 2020, p.175)
Dez anos após sua morte, a longevidade das obras e da importância de Maya Angelou prevalece e revela novas camadas, gerando desdobramentos a cada leitura ou (re)leitura: a escritora deixou um legado que espelhou preocupações de seu tempo, e através de sua narrativa poética evidenciou as complexidades de sua existência — se articulando com questões coletivas da comunidade afro-americana e estabelecendo uma base para reflexões contínuas sobre raça, identidade e gênero. Por fim, a memória de Angelou serve como um lembrete de seu papel ativo na luta política por direitos da população negra e de toda sua trajetória de superação pessoal, que através da literatura serviu (agora retomando as palavras de Conceição Evaristo) como meio de sublimação da dor.
REFERÊNCIAS:
ANGELOU, Maya. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. 1. ed. São Paulo: Astral Cultural, 2018.
ANGELOU, Maya. The Complete Collected Poems of Maya Angelou. New York: Random House, 1994.
ANGELOU, Maya. Maya Angelou: Poesia Completa. Tradução de Lubi Prates. São Paulo: Astral Cultural, 2020.
RODRIGUES, Felipe Fanuel Xavier. No princípio, a verdade: Angelou-grafia da vida. In: PINHO, Davi; MONTEIRO, Maria Conceição (org.). Literaturas de Língua Inglesa: leituras interdisciplinares. Vol VIII. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2023. (p. 33-46)
TAG – Experiências Literárias. “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”. TAG – Experiências Literárias, edição de setembro, 2018. Disponível em: https://issuu.com/taglivros/docs/tag_revistasetembroissu2. Acesso em: 22 de maio de 2024.