Virginia Woolf foi uma das escritoras mais prolíficas do século XX, autora de diversos livros de ficção e ensaios, como Um teto todo seu (1929) e Mrs. Dalloway (1925). Nascida em uma família altamente instruída e ligada às artes, Woolf foi educada em casa por meio da vasta biblioteca de seu pai. Após a morte de seus pais, ela começou a escrever e formou, junto aos amigos do seu irmão que estudava em Cambridge, um coletivo de artistas, escritores e intelectuais chamado Bloomsbury Group. Unidos pelo ideal modernista, o grupo apresentava um forte questionamento aos modos de vida vitorianos, que não faziam mais sentido em um mundo pós guerra.
Bloomsbury tornou-se sinônimo de arte vanguardista, estética formalista, sexualidade libertina, pensamento radical, filosofia racional, política progressista anti-imperialista e feminista, objeção de consciência durante a Primeira Guerra e antifascismo em 1930.
(Jane Goldman, The Cambridge Introduction to Virginia Woolf)
Em 1925, Woolf iniciou um relacionamento com Vita Sackville-West, que foi sua amiga durante 15 anos. Essa relação, que tomou 5 desses 15 anos, coincidiu com os anos mais produtivos de Woolf enquanto escritora e foi ficcionalizada no filme Vita e Virginia (2018), em que Woolf é interpretada por Elizabeth Debicki. Vita também inspirou Woolf a escrever o romance Orlando: Uma Biografia.
Publicada em 1928, a obra já foi descrita como a ‘mais longa e encantadora carta de amor da literatura’, sendo dedicada a amante de Woolf, que é representada pelo próprio (ou própria) Orlando: “Suponhamos que Orlando acaba por ser Vita”, escreveu Woolf em uma carta, “e é tudo sobre ti e os desejos da tua carne e a sedução da tua mente”. Narrado pela figura do biógrafo, o romance inicia com Orlando como um jovem nobre da época elisabetana, que sonha em ser poeta e sempre carrega consigo o seu manuscrito intitulado “The Oak Tree”. Em sua imortalidade, a existência excepcional de Orlando atravessa quatro séculos e é tomada por uma pluralidade de paixões, reflexões sobre a literatura, romances, comportamentos e questionamentos.
Um desses questionamentos advém da sua existência enquanto um humano metamorfoseado: após Orlando se transformar em mulher durante uma viagem à Turquia, no meio do romance, ela entende as particularidades das suas duas experiências de existência, não se limitando as expectativas atribuídas a cada sexo ou a formas de expressão puramente masculinas ou femininas, pelo contrário:
Podemos nos beneficiar desta pausa na narrativa para fazer alguns comentários. Orlando havia se transformado em mulher — isso é inegável. Mas, em todos os demais aspectos, continuava a ser precisamente como era antes. A mudança de sexo, embora viesse a alterar o futuro deles, nada fizera para lhes mudar a identidade. Seus rostos permaneceram, como provam os retratos, praticamente os mesmos. A memória dele — mas daqui em diante, para obedecer às convenções, devemos dizer “sua” e não “seu”, e “ela” e não “ele” —, ou seja, a memória dela percorria todos os eventos do passado sem encontrar o menor obstáculo. Talvez houvesse uma ligeira nebulosidade, como se algumas gotas negras tivessem caído no límpido poço da memória; certas coisas haviam ficado um pouco turvas, mas isso era tudo. A mudança parecia ter ocorrido de forma indolor e completa, não causando nenhuma surpresa a Orlando. (Woolf, 1928, trad. Jorio Dauster)
Pode-se dizer, então, que há uma ponte conversacional entre Orlando e o ensaio feminista Um teto todo seu, publicado um ano mais tarde: os dois textos apresentam uma discussão sobre o tema da androginia, que é mais fortemente debatido no ensaio, em uma seção própria. A contradição ao gênero não ocorre apenas em relação ao gender, mas também ao próprio genre, na medida que Woolf parodia e satiriza a biografia, em um jeito pouco convencional para a escrita biográfica: na tessitura do texto, são feitos diversos comentários metaficcionais sobre a própria figura do biógrafo e seu processo textual.
A escrita de Woolf registra e molda a experiência moderna, a consciência moderna; mas também abre ao escrutínio o próprio processo de escrita, um processo que ela própria regista frequentemente e que considera estimulante.
(Jane Goldman, The Cambridge Introduction to Virginia Woolf)
A quebra com a dicotomia do gênero e de demais padrões está profundamente relacionada ao fazer literário e ao espírito questionador modernista, e ecoam a perspectiva política de Woolf: em sua existência, Orlando não muda de nome, nem tem sua essência afetada pela mudança de seu sexo ou gênero. Sua existência andrógina permite que ele/ela adentre em uma existência mais complexa e completa que o binário permite explorar, construindo um “eu” além do que os comportamentos esperados para o existir feminino ou masculino permitem compreender. Como mulher, explora outras existências, subjetividades e possibilidades: Orlando se aproxima do século da própria Woolf, e publica o seu poema, depois de anos de trabalho, tornando-se uma aclamada mulher poeta.
Orlando: uma biografia é uma ótima obra para se debruçar sobre durante o mês de junho, mês em que é celebrado o orgulho. Além disso, é um ponto de partida interessante para conhecer o trabalho literário e político da autora inglesa.