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As dimensões do amor em “Fleabag”Leitura em 6 minutos

A imagem apresenta uma frase de Fleabag, em que ela diz que não sabe o que fazer com o amor que sentia por sua mãe

Criada e protagonizada pela multitalentosa artista inglesa Phoebe Waller-Bridge, a série de comédia Fleabag foi ao ar pela primeira vez em 2016, pela BBC, e em sequência foi distribuída pela Prime Video. Mesmo em um espaço de tempo curto, de 300 minutos divididos em apenas duas temporadas, a série aborda a complexidade emocional da protagonista, altamente amplificada pelo seu entorno e experiências de vida. O enredo apresenta a tentativa da personagem, cujo apelido dá nome ao seriado, em tentar lidar com as suas próprias questões, a medida em que a série avança em meio à sua relação com a família e parceiros amorosos. Essas questões sobre a interioridade da personagem se desvelam à medida que se conhece mais sobre a protagonista, em um aumento do grau de “intimidade” de Fleabag com o seu telespectador. 

A série foi baseada em uma curta esquete teatral, e ela utiliza tanto dos elementos cômicos quanto do drama para estabelecer a sua mensagem, abordando temas sérios e promovendo questionamentos de forma muito perspicaz. Esse caráter altamente  teatral é mantido pelas quebra da quarta parede, em que Fleabag estabelece seus momentos de introspecção, reflexão e, ao mesmo tempo, cria uma conexão com o expectador. Por meio desse recurso, ela pode entender melhor os seus sentimentos e o entendimento das situações que vivencia, ao mesmo tempo em que brinca e expressa o que se passa em sua cabeça para quem a assiste, em momentos quase confessionais.

É estabelecida, então, uma profunda conexão com a personagem mesmo que não se saiba nem o seu próprio nome, apenas pelo apelido jocoso que ridiculariza e destoa da sua imagem principal. A principal lembrança que se tem de Fleabag é da sua aparência arrumada, com seu batom vermelho e sobretudo preto característicos — e essa estabilidade de mulher adulta é desafiada pela personalidade e fragilidade da protagonista. A falta de um nome conhecido pelo público não é uma característica única sua, já que muitos dos personagens da trama também não tem nome — como os seus familiares e o padre por quem se apaixona perdidamente na segunda fase da narrativa. Somos levados a conhecê-los mais propriamente por seus papeis e repercussões na narrativa e na própria vida de Fleabag.

O jogo relacional da Fleabag é tão complicado quanto o seu próprio interior, e pode-se perceber uma relação tensa com o pai e a madrasta, já que a personagem ainda sofre com o luto decorrente da morte da mãe. A figura materna é constante na narrativa e ela a mantém o tempo todo perto de si, tanto em seu coração quanto por meio de uma estátua, que em um primeiro momento aparece como um elemento de riso, mas que simbolicamente reaparece ao longo dos episódios. Além disso, Fleabag tem uma relação ácida com sua irmã, bem contrastante a ela em seu pudor e organização pessoal, mas as duas não deixam de ser próximas de sua própria maneira, com uma melhora dessa parceria conforme o avanço da narrativa.

Os conflitos internos da personagem se intensificam quando um grande motivo de sua instabilidade é explicitado no último episódio da primeira temporada, e seus comportamentos e sentimento de não-pertencimento são explicados pelo segredo até então mantido: Fleabag se sente culpada pela morte de sua amiga Boo, figura que começa a ser rememorada constantemente. Todas essas tensões parecem contornar a narrativa de Fleabag, mas tantos enlutamentos não teriam espaço ou profundidade se não fosse o profundo amor que está por trás das constantes perdas e da tristeza que molda o desenvolvimento da protagonista. 

Com o aparecimento do padre na segunda temporada, pode-se dizer que esse luto dá lugar a um momento mais romântico, apesar de marcado por uma constante finitude e melancolia devido ao seu cargo na instituição católica e a impossibilidade de um relacionamento concreto. Apesar da brevidade, é por ele que ela se sente entendida e percebida, até mesmo em seus relapsos e olhares de esguelha, que vão diminuindo com a sua presença. Com a palavra “presença”, pode-se pensar tanto na companhia que ele faz a Fleabag tanto quanto a permanência dela no tempo presente, com menos ocorrências da quebra da quarta parede.

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A solidão, a finitude das relações e o tempo breve que elas tomam na vida de cada um são amaciados pelo humor, ao mesmo tempo em que a personagem de Waller-Bridge escancara a sua (e a nossa) própria vulnerabilidade ao entender as próprias divisões. A famosa cena final, com a despedida do padre, é ainda mais indicativa da efemeridade das relações mas da eterna permanência das marcas que elas têm em nossas vidas: após a despedida e o então fim desse amor, Fleabag avista uma raposa e também retira de sua bolsa, repentinamente, a estátua de sua mãe, e se dirige em direção a própria casa, em um talvez indicativo de um encontro consigo mesma apesar dessas melancolias. O icônico “vai passar”, do personagem de Andrew Scott, parece lembrá-la de que os momentos ruins também fazem parte da tessitura da vida, e que é possível se reajustar e lidar com essas dores inevitáveis que fogem da nossa sensação de controle.

Em um discurso atípico durante o casamento do pai e da madrasta de Fleabag, o padre menciona como o amor é complicado, e que nem sempre há uma certeza de onde colocá-lo: 

I was taught if we’re born with love then life is about choosing the right place to put it. People talk about that a lot, feeling right, when it feels right it’s easy. But I’m not sure that’s true. It takes strength to know what’s right. And love isn’t something that weak people do. Being a romantic takes a hell of a lot of hope. I think what they mean is, when you find somebody that you love, it feels like hope.

É inevitável não fazer uma curiosa intersecção: apesar de se referir ao amor romântico, o discurso lembra de como Fleabag tentou buscar forças em Boo ao processar o amor por sua mãe e tentar entender onde o colocaria após a sua partida. Em meio a tantas buscas do entendimento do amor, parece difícil dizer algo que já não tenha sido dito antes, mas a saudade talvez seja o jeito mais concreto, bonito e angustiante de se saber que ele esteve ali e de que ele permanece vivo, de sua própria maneira.

Publicado por

É graduanda em Letras - Inglês e literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.

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