A poética gótica, tendo se consolidado no final do século XVIII, encontrou terreno fértil para sua produção também nos séculos subsequentes. Mesmo que o útlimo romance considerado estritamente gótico por alguns críticos seja Melmoth the Wanderer (1820), do irlandês Charles Robert Maturin, é possível ver a expansão de temas, imagens e do modo gótico através do tempo. Quer dizer, não é incomum encontrar seus traços em romances consagrados como Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847), O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë, 1847) ou nos romances de sensação que surgiram com força e dominaram o público leitor na segunda metade daquele século. O século XX viu avanços científicos, médicos, civis e tecnológicos, além das grandes guerras e pandemia, que chacoalharam o mundo, o que resultou nos monstros imateriais de H. P. Lovecraft, no horror de Stephen King, nas distopias nem-tão-distante-assim de Margaret Atwood e Octavia E. Butler, entre outros.
No século XIX, um período em que a taxa de letramento na Grã-Bretanha crescia, a procura por ficção pela classe trabalhadora também aumentava. Isso resultou numa demanda de mercado por publicações acessíveis que replicassem os romances e discursos da classe média, mas que fossem direcionados a leitores e leitoras da classe trabalhadora através da ficção seriada. Custando um penny [centavo], cerca de um 1/12 de um romance de Charles Dickens, muitos autores se dedicavam a histórias seriadas, que poderiam se estender por meses, sobre sequestros, assassinatos, incêndios criminosos, bigamia, revoluções e todo tipo de revelação chocante. Surgem então os “penny bloods” ou “penny dreadfuls”, detentores de nomes um pouco gore (“sangrentos” e “assustadores”, respectivamente) em virtude de suas narrativas sensacionalistas, geralmente violentas e também ameaçadoras das normas e virtudes da classe média vitoriana.
Respondendo a ansiedades da classe trabalhadora, essas histórias eram formatadas como episódios semanais publicados em segmentos de oito páginas acompanhadas de uma ilustração. As pesquisadoras de penny dreadfuls Nicole C. Dittmer e Sophie Raine, em Penny Dreadfuls and the Gothic (2023), informam que aqueles contos que atingissem baixa popularidade eram descontinuados enquanto os que tinham uma audiência grande eram prováveis de manter a sua publicação. As autoras dizem o seguinte sobre a recepção dessas publicações na época:
Descendendo de várias tradições, o conteúdo dos penny era considerado problemático, uma forma inferior de literatura com potencial para influenciar os cidadãos vitorianos suscetíveis. Como produtos únicos informados por um material variado, as publicações de pennies compartilhavam uma relação simbiótica com o Newgate Calendar [Calendário de Newgate] e romances de sensação, adotando assim os discursos contextuais que refletiam a moral da classe média por meio de admissões de culpa. (p. 9)
Esse tipo de publicação não se manteve a mesma ao longo do tempo. Quando surgiu, na década de 1830 até a de 1850, eram conhecidos como “penny bloods” por causa do seu conteúdo sangrento. Mais tarde, por volta da década de 1860, eles foram reformulados como “penny dreadfuls” e direcionados a uma audiência mais jovem e com conteúdo em torno de aventuras de protagonistas masculinos. No entanto, ambas as formas conviveram no mundo editorial por muito tempo. Em virtude da sua produção em massa e do material de baixo custo utilizado em sua composição, muitos desses textos se perderam com o tempo. Afirmar a autoria dos penny dreadfuls também é uma questão delicada quando se considera a grande quantidade de publicações num curto intervalo de tempo, além da contribuição coletiva e parceria de autores na escrita de muitas dessas histórias.
Como é de se imaginar, a sua recepção crítica não foi exatamente favorável:
Embora oferecessem histórias de aventura e fantasia, eles [os penny dreadfuls] foram duramente criticados pela exibição de temas perversos e imorais. Essa literatura barata de “penny” perturbou a sociedade vitoriana. A mudança nesses contos episódicos, embora ainda mantendo a popularidade entre os leitores adultos, teve como alvo os leitores jovens. Os cidadãos da classe média, que viam a literatura como um método de melhoria social, viam essas publicações como uma ameaça à moralidade e aos valores (McDowell, p. 490[1]). Eles diziam que os “heróis” protagonistas, rebeldes e violentos, promoveriam a criminalidade e delinquência nas crianças da classe trabalhadora. (Dittmer; Raine, 2023, p. 10)
Esse tipo de crítica soa familiar?
De mulheres a crianças, a leitura de textos da poética gótica parece causar um estresse tremendo naquelas pessoas mais conservadoras.
Para a nossa coluna sobre o gótico, tomando emprestado o nome Penny Dreadfuls, é nossa intenção não somente celebrar esse tipo de literatura, mas também trazer o seu espírito irreverente e desafiador (que é muito intrínseco do próprio gótico) para apresentar, espalhar e papear sobre o gótico em suas mais diversas formas. Além de postagens sobre romances, contos, penny dreadfuls, séries de TV e filmes, contaremos também com resenhas, entrevistas e contribuições de pesquisadores e pesquisadoras da área.
Que tal ler algum penny dreadful?
- Varney the Vampire; Or the Feast of Blood (1845-7);
- Wagner the Wehr-Wolf (1846);
- The String of Pearls; Or the Barber of Fleet Street (1846-7);
- The Wild Boys of London; Or the Children of the Night (1866);
- Spring-Heeled Jack, the Terror of London (c. 1890).
Nos vemos no próximo capítulo!
Referências
ANDERSON, H. The shocking tale of the penny dreadful. Disponível em: <https://www.bbc.com/culture/article/20160502-the-shocking-tale-of-the-penny-dreadful>. Acesso em: 5 abr. 2024.
DITTMER, Nicole C.; RAINE, Sophie. Penny Dreadfuls and the Gothic. Cardiff: UWP, 2023.
[1] As autoras citam “Penny Dreadfuls” de Stacey McDowell em The Encyclopedia of the Gothic (2016), organizado por William Hughes, David Punter e Andrew Smith.