Este mês de abril marca os 20 anos da publicação do romance de ficção científica Não Me Abandone Jamais, do escritor japonês-britânico Kazuo Ishiguro. Já lido por muitos como um clássico moderno, o romance segue sendo renovado através das diferentes leituras e perspectivas críticas, desde a sua leitura obrigatória no vestibular de 2023 da UERJ e na lista de 100 Melhores Obras de Língua Inglesa desde 1923 da revista Time, às suas adaptações cinematográficas e teatrais, estreladas tanto por produções japonesas quanto britânicas ao longo de toda a década de 2010.
Além dessas e outras recepções que Kazuo Ishiguro e seu romance tiveram ao redor do mundo (o próprio Ishiguro tendo seu corpo literário laureado com o Nobel de Literatura de 2017), o sentido da história de Não Me Abandone Jamais é ainda posto em prática em 2025. Os desenvolvimentos tecnológicos continuam a imperar sobre a humanidade, especialmente a juventude – tal como a trama científica que sobrevoa o trio principal de personagens em Não Me Abandone Jamais. Por isso, no post de hoje, pretendemos refletir sobre o romance aniversariante e a sua atualidade, apesar dos vinte anos de distância, entendendo-o como um clássico do nosso tempo.

Não Me Abandone Jamais passa-se desde a década de 1960 ao final da de 1990 na Inglaterra, narrando do início ao fim o vínculo e a vida de Ruth, Tommy e Cath, que é a narradora e por isso última sobrevivente do enredo. Por conta da maneira autobiográfica que a personagem-narradora lentamente reconta a própria vida, a questão distópica que parece unir e traçar a narrativa é mais o plano de fundo e solo da história do que uma realidade que os personagens questionam e combatem ativamente. O que mais parece estar em questão ou em “combate” são os sentimentos da narradora pelo que ela narra e as relações do que ela narra com os sentimentos que ela carrega durante o momento de narração. Essa falta de homogeneidade no discurso do romance se torna mais evidente ao notar a frequência do pronome plural na voz da narradora, como se a distinção entre ela e seus dois melhores amigos, ao menos em sua memória, fosse embaçada ou mesmo pouco importante.
Ruth, Tommy e Cath, assim como todas pessoas da mesma idade que eles conhecem, são clones feitos para doar órgãos vitais a fim de melhorar a saúde da população. Armazéns de vida, os clones são criados, educados e conservados desde crianças em internatos desligados do mundo exterior, para aos poucos se incluírem na sociedade enquanto produtos medicinais. A técnica foi criada e posta em prática após as tragédias e sequelas da Segunda Guerra Mundial, tratando e curando pessoas de diferentes doenças e problemas de saúde.

O trio é criado até os 18 anos no internato de Hailsham. Nesta infância órfã, a amizade de Ruth e Cath, apoiada pela divisão de meninos e meninas nos dormitórios do internato, era mais forte do que a das duas com Tommy, que era excluído e zombado por todas as outras crianças. Foi neste aspecto que Cath se diferenciou de Ruth, ao ser a única, dos meninos e das meninas, a mostrar a ele gentileza e reservar a ele uma atenção especial em meio a dolorosa segregação. Apesar de isso ter cimentado uma conexão profunda entre os dois, Ruth e Tommy namoram até o fim da estadia dos três em Hailsham, ambos prosseguindo uma amizade estritamente platônica e coletiva com Kath.
É nesse sentido que pode-se perceber o triângulo amoroso entre os três personagens, o que produz o vínculo que vai durar toda a vida deles. Ao passo em que Ruth e Cath eram já melhores amigas desde o começo, foi a nova proximidade de Cath com Tommy que sugeriu certa distância dela ante Ruth, sendo este o motivo para Ruth decidir conquistar romanticamente Tommy. Desse jeito, provocando um impasse para Cath não poder ter uma relação mais do que platônica com Tommy, Ruth acabou selando as relações do grupo entre si.
Vale apontar o contexto interpessoal como igualmente importante à realidade distópica, de jeito que possa ser inesperadamente difícil delimitar uma relação de subordinação entre os dois. De toda maneira, ou mesmo por causa disso, o que fica em evidência são as relações intrinsecamente humanas dessas crianças órfãs, apesar da condição desumana, o sentimento persistente por trás do título, “never let me go”. É dessa maneira que se nota o fio condutor que se estende pelas três partes do romance, a relação dos três personagens.

Ruth, Kath e Tommy da produção do Rose Theater Kingston (2024)Nesse aspecto, o internato de Hailsham é páreo por registrar a humanidade de seus alunos por meio dos trabalhos artísticos e de escrita, reunindo-os em uma galeria. Desse jeito, apesar dessas crianças terem sua humanidade negada desde o nascimento (sendo coisificadas em razão das tecnologias de saúde), ainda existia um olhar examinador e empático por trás da instituição de Hailsham que queria constatar e honrar a alma nessas pessoas, apesar da vida pré-determinada delas. É sabido também das intenções da educação em Hailsham ser de dar uma infância feliz aos clones, além da iniciativa de representá-los como pessoas ter um respectivo peso para a comunidade científica e para o público geral a respeito da vida deles.
Aos 18 anos, antes de uma idade adulta mais assegurada e pronta chegar, os clones passam um pequeno período de tempo em lugares semi-isolados mas de muito menor disciplina e vigília onde eles podem pela maior parte cuidar de si mesmos, e até ir às cidades e interagir com o resto da população. Os três personagens são mandados juntos ao Casario, a segunda parte da história e lugar em que as complexas relações entre os três são mais asperamente explicitadas, em cena com a sua adolescência. O parque de infância é trocado por uma república friorenta povoada por jovens que podiam fazer o que quisessem, (seja discutir poesia, viajar, ler), onde meninas e meninos não precisam dormir separados e não são proibidos de interagir com o mundo real. A relação dos três é então redimensionada: o romance de anos entre Ruth e Tommy (ou de Ruth para com Tommy) já é visivelmente sexual e íntimo para Kathy, que se encontra encurralada entre olhar a performance social deles criticamente e olhar para si mesma em relação aos outros naquele ambiente.
“Por outro lado, quando me lembro desse período, sinto que a nossa imagem naquele primeiro dia, todos amontoados numa rodinha em frente à sede, não é tão incongruente assim. Porque, de certa maneira, talvez não a tenhamos posto de lado tão radicalmente quanto imaginamos. Porque em algum lugar, lá no fundo, uma parte de nós permaneceu igual: receosos do mundo em volta e – por mais que nos envergonhássemos disso – incapazes de deixar o outro partir de uma vez por todas.”
Nesse momento, afastados de Hailsham, os três entram em contato com novas percepções sobre o que eles viveram no internato. O casal de veteranos Rodney e Chrissie ouviram de casais de clones verdadeiramente apaixonados que conseguiram alguns anos de folga antes de virarem doadores. Isso concorda com a experiência do trio de ter uma possível humanidade encontrada através dos trabalhos artísticos em Hailsham, porque é a provação do amor verdadeiro o reconhecimento de humanidade nos clones e o merecimento de mais alguns anos de vida. A sugestão da possibilidade coloca seriamente em evidência as relações dos personagens: admitindo ou não, todos os três sabem que o amor entre Ruth e Tommy não serviria.
Em naipe similar às relações sexuais que Ruth e Tommy estavam tendo próximo a Cath, a narradora também se encontra, mais quieta e privadamente, com o sexo. É nisso que a pesquisa por um DNA original se articula: os jovens reconhecem, mesmo sem dizer, que os genes dos quais eles foram originados pertencem às classes marginalizadas da sociedade, como as mulheres das revistas pornográficas que Cath folheia. Pode ser percebido que os três estavam tentando, tal como faziam as guardiãs em Hailsham, achar em si mesmos algo que os ligasse à realidade inegavelmente humana que os circulava.

Porém, assim como o amor de Tommy e Ruth era mais administrativo do que orgânico, tal como a iniciativa de trabalhos de arte e de escrita em Hailsham, essa tentativa era somente uma dissimulação do que estava os encarando na frente deles. Isso é, as condições inumanas que eles não podem contornar; a lenta morte em nome do motivo científico e tecnológico de eles estarem “vivos”. Essa pequena adolescência do Casario é inundada por um sentimento feio e doloroso de Cath ter a sua sinceridade ignorada pelo abandono dos dois, assim como pelo abandono de uma humanidade e consequentemente de uma escapatória, sendo que tanto Ruth quanto Cath são encaradas de volta pelo vazio ao não encontrarem as pessoas de quem elas são clones. Desta forma, Kath vê-se sem escolha a não ser finalmente emendar esta parte da vida deles e parar de atrasar o inevitável.
Kath então dá seguimento a seu trabalho de cuidadora dentro do sistema de doação de órgãos, cuidando e supervisionando dos doadores entre recuperações e doações. Mais de onze anos passados, nos quais a presença de Ruth e Tommy na vida da narradora é apenas mental, a última parte do romance começa. Nesta parte, com os personagens mental e fisicamente gastos, os personagens chegam juntos a conclusões mais aprofundadas a respeito da natureza deles e do que eles passaram – chegando a mesmo procurar a diretora de Hailsham e a principal guardiã do instituto a respeito da iniciativa dos trabalhos artísticos e dos anos de folga dados aos clones apaixonados. Por fim, concomitante ao fechamento de Hailsham, os personagens descobrem que estavam esperando por nada.
Ao longo da história, podem ser notadas diferentes tentativas de fazer sentido da realidade: a narração do passado, que, turbulenta por si só, é também situada no presente e nos sentimentos do presente; a maneira que Ruth controlar o jeito que tanto Tommy quanto Kath viam a si mesmos e a relação dos três; e o que as guardiãs de Hailsham diziam ou deixavam de dizer às crianças, tal como elas no fim da história revelam, e mesmo a maneira que elas tentavam encontrar e honrar o que havia de humano nas crianças a fim de representar publicamente. Mais do que isso, o próprio sentido de vida de Ruth, Tommy e Kath já era previsto e feito, criando um contraste entre os amplos significados que eles tentavam encontrar nas próprias vidas e a única função a qual eles verdadeiramente serviam.
No fim, o leitor é confrontado com uma imagem muita crua e central da narrativa, na qual a narradora, entre os lugares que ela devia estar enquanto cuidadora, se encontra violentamente com o entendimento de ter sido abandonada para sempre. No fundo, pode ser notada a tentativa constante de Tommy, Ruth e Kath de não serem abandonados, sabendo da iminência de isso acontecer. Desse jeito, Não Me Abandone Jamais guarda consigo a própria mensagem do seu título e a situação que ela pressente, o que fala intimamente da condição humana em um mundo onde esta já é avançadamente mediada pelo que não é humano.

Publicado por
É graduando em Letras - Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bolsista do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Marcela Santos Brigida.