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Susan Bassnett e a tradução teatral: quando o palco e a página se encontram15 min read

E num porvir distante

Este ato nobre há de ser encenado,

Por estados e línguas por nascer!

Shakespeare, Júlio César (3.1)

 

A minha história com as Letras começou muito antes de eu adentrar os corredores amplos e cinza do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) em 2015. Eu tinha 15 anos quando li pela primeira vez o romance inglês O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, e me apaixonei pela literatura inglesa, o que só foi possível graças ao ofício da tradução.

Como um golpe do destino, outros 15 anos se passaram quando abracei essa profissão. Se, para alguns, o ato de traduzir é o de transpor um texto de uma língua-fonte para uma língua-alvo, para outros, traduzir é dar um passo à frente, ir além do original. Tal perspectiva impõe a nós, tradutores, uma tensão constante com a estereotipada noção expressa pelo provérbio italiano traduttore traditore[1]. O fato é que o tradutor faz escolhas com atenção, traçando seus caminhos pelo texto fonte, enquanto aplica estratégias tradutórias definidas, imprimindo seu estilo à tradução, uma vez que traduzir é um ato criativo.

Nos estudos da tradução, o campo da tradução teatral é ainda bastante jovem e aparece de forma discreta. No entanto, a tradução teatral ganhou força por seu papel nos estudos culturais, deixando de ser analisada enquanto tradução literária para se tornar uma cadeira à parte, tendo como objeto de estudo as especificidades do texto teatral, tais como os signos verbais e não verbais e as diversidades culturais.

Em abril de 1976, no Colóquio Internacional Literature and Translation, Susan Bassnett[2] – uma das maiores autoridades nos estudos da tradução – apresentou o artigo “Translating spacial poetry: an examination of theatre texts in performance”, que posteriormente tornou-se uma referência nos estudos da tradução teatral. Nele, a teórica apresenta novos conceitos-chave como padrões de “ritmo-tempo” e “ritmos-subtextuais”, descrevendo o texto teatral como “[m]ais do que um texto literário, […] uma combinação de linguagem e gesto reunidos em um quadro harmonioso temporal” (1978, p. 71).

Ao longo de sua carreira, Bassnett desenvolveu um percurso teórico a partir dos conceitos de performability e playability, tendo como objetivo abordar o problema da representação espacial do texto teatral e sua tradução. Segundo a autora, a maior dificuldade enfrentada pelo tradutor é o aspecto não linguístico, ou seja, os estilos de intepretação relacionados à cultura de um dado país produzem aspectos que não são traduzíveis.

A atuação clássica britânica exige que o ator fisicalize o texto, reforce possíveis obscuridades textuais com signos cinésicos e avance pelo texto, às vezes mesmo contra o texto. Já a tradição alemã, que é mais intensamente intelectual, tende ao extremo oposto – o texto adquire um peso que o contexto espacial reforça e é o texto que carrega o ator em frente e não o oposto. E por fim, a tradição italiana da virtuosidade por parte do ator cria ainda outro tipo de estilo de atuação – o texto da peça torna-se o instrumento do ator e a performance da peça é uma orquestração de muitos instrumentos diferentes tocando juntos. (1985, p. 92)

Em seu livro Translation Studies (1980), Bassnett dedica o capítulo final aos problemas específicos da tradução literária, encerrando-o com o tópico “Translating Dramatic Texts”. Na obra, a teórica reconhece que, apesar de os estudos da tradução literária centralizarem-se no problema da poética, a tradução teatral é ainda uma área de pouca visibilidade, na qual os estudiosos, em sua maioria, defendem que o processo da tradução do texto teatral é o mesmo da tradução do texto literário. Visão da qual a autora discorda. Para ela, o texto teatral impõe uma escolha ao tradutor: traduzir o texto teatral como um texto literário ou traduzir o texto teatral como parte de um sistema mais complexo – a encenação.

A autora nos apresenta, então, a noção de playability como pré-requisito da tradução teatral, o que exige que o texto, quando levado à língua-alvo, sofra mudanças tanto de ordem linguística quanto de ordem estilística para encaixar características como ritmo e padrão de entonação. Além disso, existe uma importante distinção: a tradução para a performance e a tradução para a página. Assim, a complexidade da tradução do texto teatral dá-se na função que ele ocupa.

Aqui adentramos outro ponto de inúmeras divergências no campo de estudos da tradução teatral: o processo de diferenciação entre texto dramático e texto teatral. Segundo a pesquisadora Claudia Soares Cruz (2013, p. 5), “o primeiro é um gênero literário e faz parte do sistema literário. Já o texto teatral pertence ao sistema teatral, sendo apenas um dos seus elementos”. É essa divisão que coloca em quase oposição alguns dos maiores teóricos do campo como Pratice Pavis (1999), Jean-Pierre Ryngaert (1996) e Sirkku Aaltonen (2000).

A percepção da inseparabilidade do texto e da performance ganhou força com Ryngaert e Anne Ubersfeld. Para Ryngaert, “o texto de teatro tem o estatuto de uma escrita destinada a ser falada, de uma fala escrita que espera uma voz, um sopro, um ritmo” (1996, p. 46). Por outro lado, embora seja possível verificar alguns elementos formais no texto dramático – lista de personagens, indicação de tempo e lugar, diversas personagens-locutoras, presença de rubrica e diálogos –, Pavis (1999, p. 405) atenta para o fato de que “é muito problemático propor uma definição de texto dramático que o diferencie dos outros tipos de textos”.

Além da questão das fronteiras indefinidas entre os gêneros literários – narrativo, dramático e lírico –, autores como Sirkku Aaltonen (2000) acreditam que nem todo texto dramático é produzido com a encenação como propósito único ou final:

Desde a época de Sêneca, os dramas de gabinete são destinados fundamentalmente à leitura e não à performance. De forma semelhante, muitos textos dramáticos obsoletos se tornaram elementos do sistema literário e não são mais produzidos no palco. O teatro não usa necessariamente textos dramáticos, e os textos dramáticos também podem existir fora do sistema teatral. (2000, s.p.)

É possível verificar, portanto, que ambos os lados apresentam raízes profundas no próprio conceito do que seja a dramaturgia. Mas também é preciso levar em consideração que, mesmo em face das diferenças, o texto dramático e o texto teatral compartilham características comuns que nos permitem reconhecer uma dada obra mesmo quando a assistimos em produções diversas, seja em mídias ou em línguas diferentes.

No artigo “Ways Through the Labyrinth: Strategies and Methods for Translating Theatre Texts”[3], Susan Bassnett reafirma que o principal problema enfrentado pelo tradutor na tradução do texto teatral é a própria natureza do texto. Ou seja, é exigido do tradutor que ele traduza o texto teatral como se ele fosse apenas um texto literário, embora trate-se somente de uma parte de um sistema complexo de signos que envolve características paralinguísticas e cenestésicas. Por isso, a ênfase no texto verbal em detrimento dos outros componentes do texto teatral seria o maior obstáculo nos estudos da tradução teatral. Bassnett relembra ainda a teoria de Tadeusz Kowzan[4], que definiu cinco categorias da expressão da performance: (1) o texto falado; (2) a expressão corporal; (3) a aparência física do ator; (4) o espaço de atuação, e (5) os sons não falados. O texto da performance seria, portanto, extraído do texto escrito ao se analisar as emissões implícitas dos personagens ou mesmo a resolução dos padrões gestuais na língua.

Desse modo, a encenação de um texto teatral seria a junção de dois textos, estando o texto da performance submerso no script da peça. Essa discussão levantada por Kowzan demonstraria, portanto, que a tradução interlingual está completamente ausente dessa discussão. Bassnett afirma que, “se o texto da performance está latente ou incorporado ou positivamente existente no texto escrito, o tradutor carrega a responsabilidade de transferir não só o linguístico, mas também uma série de outros códigos” (1985, p. 89).

A estudiosa, então, rastreia as estratégias mais comumente usadas, são elas:

  1. Tratar o texto teatral como obra literária. É o tipo de estratégia mais utilizada, na qual o padrão de entonação, entre outras características paralinguísticas, não ocupa papel central, sendo a noção de fidelidade ao original o centro do projeto tradutório. A função desse tipo de tradução é atender ao mercado editorial voltado para a publicação de obras completas de um autor.
  2. Usar a cultura da língua-fonte como estrutura do texto. Estratégia comumente utilizada nas décadas de 1970 e 1980, especialmente em países de língua inglesa. Envolve o uso de imagens estereotipadas na língua-alvo da cultura da língua-fonte para construir uma estrutura cômica.
  3. Traduzir “performability”. O termo performability é frequentemente utilizado por tradutores que levam em conta a dimensão da encenação no processo tradutório, uma vez que reproduzem linguisticamente a “performabilidade” do texto. Segundo Bassnett, há uma tentativa de criar na língua-alvo um texto com fluidez de ritmo, permitindo que a fala do ator saia sem dificuldades, fazendo a adequação de sotaques e registros regionais da língua-fonte para a língua-alvo, e, quando necessário, omitindo passagens que caracterizem a cultura de partida.
  4. Criar formas alternativas para o sistema de versificação da língua fonte. Estratégia utilizada somente no teatro em verso. Segundo a autora, os versos alexandrinos de Jean Racine são comumente traduzidos para o inglês em versos brancos. No Brasil, o pentâmetro iâmbico de Shakespeare é majoritariamente traduzido em decassílabos e dodecassílabos.
  5. Tradução colaborativa. Para Bassnett, essa estratégia produz os melhores resultados, pois envolve a colaboração de pelo menos duas pessoas – um nativo da língua-fonte e um nativo da língua-alvo, ou alguém com conhecimento da língua-fonte que trabalhe em parceria com o diretor e/ou atores. Nessa estratégia, o tradutor produziria um “cenário” básico a ser trabalhado pela companhia teatral, evitando, ainda, a noção de “performability” como uma qualidade que possa ser adicionada ao texto escrito, uma vez que o tradutor envolve-se na construção dos textos escrito e oral. Uma outra vantagem desse tipo de tradução seria o envolvimento do processo tradutório no conjunto de problemas que fazem parte da construção da performance do texto teatral.

Após se deparar com os estudos de Stanislavski acerca do subtexto decodificado pelo ator em forma de gesto, Bassnett revisita seus artigos anteriores e percebe que “a ideia de um padrão gestual em um texto parece ser um conceito vago e confuso” (2000, p. 98). A teórica apresenta, então, sua nova posição, afirmando que, se há uma linguagem gestual no texto, há uma maneira de decifrá-la, e isso acontece por meio das unidades dêiticas. Uma vez que tais unidades determinam a interação entre os personagens, também estabeleceriam a caracterização dos outros códigos na performance.

Bassnett conclui afirmando que não há uma única forma correta de abordar a tradução do texto teatral, e sim várias formas possíveis, renegando aqui seu conceito de “performability”:

Traduzir para o teatro é uma atividade que envolve a consciência de múltiplos códigos, tanto dentro quanto em torno do texto escrito. … O que é mais problemático é a noção de “performabilidade”, a qualidade implícita, indefinida e indefinível de um texto teatral ao qual tantos tradutores se agarram como justificativa para suas várias estratégias linguísticas. Parece-me que chegou a hora de deixar de lado a “performabilidade” como critério também para a tradução e focar mais de perto nas estruturas linguísticas do próprio texto. Pois, afinal, é apenas na escrita que o performável pode ser codificado e há interpretações infinitas de performance possíveis em qualquer texto teatral. O texto escrito, por mais problemático que seja, é a matéria-prima com a qual o tradutor deve trabalhar e é com o texto escrito, e não com uma atuação hipotética, que o tradutor deve começar (2000, p. 101).

Em “Translating for the Theatre: The Case Against Perfomability”, de 1991, Bassnett reitera que a visão mais comumente aceita sobre a origem das dificuldades da tradução do texto teatral advém da própria natureza do texto. Ou seja, o texto teatral é a soma do texto verbal e de uma dimensão gestual desse texto. No entanto, a autora reconhece que, ao aceitarmos essa definição – que ela própria já defendeu –, exigimos do tradutor um trabalho impossível, pois não seria possível tratar um texto escrito que é parte de um complexo sistema de signos como se fosse um “texto literário criado para a página e lido como tal” (1991, p. 100).

Bassnett conclui que, embora os textos teatrais não devam ser traduzidos como textos apenas para leitura, visto que há a dimensão da performance, não é possível colocar uma noção abstrata de performance como mais importante do que as considerações textuais. Se aos diretores e atores cabe a transposição do texto verbal em performance, ao tradutor cabe a tradução do texto para a página, ocupando-se das soluções de problemas linguísticos tais como: diferenças de registro no que concerne idade, gênero, posição social, unidades dêiticas, consistências nos monólogos, entre outras.

Por fim, a solução de questões linguísticas deve ser prioridade no trabalho com o texto-fonte, para gerar melhores soluções na língua-alvo para a leitura dos que irão executar a performance. Bassnett reconhece a mudança do seu pensamento sobre tradução teatral. Se ela inicia essa jornada acreditando em uma dimensão física do texto teatral, em seus textos posteriores a estudiosa chega à conclusão de que o texto teatral é codificado, lido e reproduzido de maneira diferente nas diferentes culturas e, por isso, a ideia de um subtexto gestual codificado pertence a um momento particular na história do teatro ocidental e não seria, portanto, passível de aplicação universal.

No capítulo “Playing on Words” da coletânea de artigos intitulada Reflections on Translation, de 2011, Bassnett volta a afirmar que, embora a tradução literária receba grande atenção nos estudos da tradução, a tradução teatral ainda é uma área pouco explorada, considerada por muitos estudiosos a “Cinderella area” desse campo de estudos – “a menos pesquisada e, provavelmente, a menos compreendida” (2011, p. 106).

Se a criação teatral envolve mais de uma pessoa, para o tradutor teatral há uma tensão entre a dimensão pública do teatro – atores, equipe, audiência e palco – e o ato individual de produzir um script. E é essa tensão que vem impedindo estudiosos de formular uma teoria da tradução teatral. Definir se uma peça é performável é tarefa difícil, porque muitas vezes o adjetivo “performável” é utilizado como sinônimo de “pronunciável”; no entanto, o que seria pronunciável para um tradutor produzindo em ambiente isolado não é o mesmo do que seria para um ator em cena. A tradução teatral ideal deveria ser um ato colaborativo.

Embora tais questões sejam espinhosas, a tradução teatral tem muito a contribuir para o aperfeiçoamento do fazer tradutório e das teorias e conceitos da tradução. É necessário que se enfrente o desafio, confrontando a gama de problemas técnicos em vez de se mostrar demasiado “reverente” – conceito caro para Sirkku Aaltonen (2000) –, e deixar-se por eles mistificar. Embora possamos recorrer a uma teoria da tradução teatral ou a um conjunto de conceitos, cada peça apresenta-se ao tradutor com um conjunto de problemas específicos, e cada tradutor lida com tais problemas de acordo com seu “conjunto de ferramentas” – individual e intransferível –, além de estar intimamente ligado a uma “visão de mundo” e a uma “visão da obra” também particulares.

Referências:

BASSNETT, Susan. Translating spatial poetry: an examination of theatre texts in performance. In: HOLMES, James; LAMBERT, José; VAN DE BROECK, Raymond. Literature and Translation: new perspectives in literary studies. Leuven: Acco, 1978, p. 161-76.

_____. Translating dramatic texts. In: _____. Translation Studies. London & New York: Routledge, 2002 (1980), p. 123-135.

_____. Ways through the labyrinth: strategies and methods for translating theatre texts. In: HERMANS, Theo (Ed.). The Manipulation of Literature: studies in literary translation. New York: Routledge, 2014 (1985), p. 87-102.

_____. Translating for the Theatre: the case against performability. In: TTR: traduction, terminologie, redaction, vol. 4, n. 1, 1991, p. 99-111. Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/ttr/1991-v4-n1-ttr1474/037084ar.pdf. Acesso em 05 jul. 2021.

CRUZ, Claudia Soares. Aspectos da Tradução de escrita dramática: tradução comentada de Lobby Hero. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas), Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

[1] Em português, “tradutor, traidor”.

[2] Susan Bassnett é professora de Literatura Comparada na Universidade de Warwick e na Universidade de Glasgow.

[3] Publicado no livro The Manipulation of Literature: Studies in Literary Translations (1985).

[4] KOWZAN, Tadeusz. Litterature et spectacle. 1975.

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