Você sabia que o primeiro romance considerado formalmente gótico quando se leva em consideração a sua forma, composição e temas, O Castelo de Otranto (1764), foi publicado por trás de uma grande mentira? Se hoje sabemos que o seu autor é o aristocrata, membro do parlamento e filho caçula do primeiro ministro britânico, Horace Walpole, à época de sua primeira publicação, próximo ao natal de 1764, os leitores ingleses acreditavam que o texto se tratava, na verdade, de uma tradução moderna de uma história medieval italiana feita por William Marshall. É somente na segunda edição, publicada em abril do ano subsequente, que Walpole assume a autoria do trabalho. E é dessa maneira que Walpole, ao mesmo tempo em que fabrica uma farsa tradutória, fabrica também o romance gótico.
A primeira recepção crítica do romance diz que “Entretanto, como uma obra de gênio que evidencia grandes poderes dramáticos e exibe uma perspectiva aguçada da natureza, O Castelo de Otranto ainda pode ser lido com prazer” (Monthly Review, fevereiro de 1765 [1987a]). Quer dizer, em uma época, a segunda metade do século XVIII, que estava às voltas com a racionalidade do Iluminismo e um tipo de arte afiliada à rigidez estética neoclássica, a narrativa de usurpação e vingança fantasmagórica e ancestral de Walpole somente agradou o público porque, como se pensava, tratava-se de uma história medieval; isto é, uma época menos iluminada em que se as suas superstições não eram bem-vistas, eram ao menos perdoadas como o produto de uma mente menos “evoluída”. Bom, podemos apenas imaginar o choque que uma figura como Walpole, que teve acesso aos meios mais exclusivos de instrução na King’s College de Cambridge, onde estudou matemática, música e anatomia, causou quando assumiu a autoria do trabalho. A crítica contemporânea, é claro, reagiu com insatisfação: “É mais do que estranho que um autor de uma mente refinada e bem-educada seja um defensor do restabelecimento das superstições bárbaras do demonismo do gótico!” (Monthly Review, maio de 1765 [1987b]).
Conhecendo a vida excêntrica de Walpole, não nos espanta que a mesma mente que tenha projetado a restauração de uma vila em Twickenham, Londres, no estilo gótico, a Strawberry Hill House, tenha de fato escrito a história gótica no melhor estilo medieval e supersticioso. Em Otranto, valendo-se da máxima de que “os pecados do pai visitarão os filhos até a terceira ou quarta geração”, a narrativa segue os acontecimentos trágicos ao redor da vida de Manfred, o usurpador do castelo de Otranto. Seu filho, Conrado, é esmagado por um elmo que misteriosamente se desprende do castelo no dia do seu casamento. Temendo o cumprimento da profecia que selava o fim de sua soberania, Manfred decide casar-se com sua futura ex-nora, Isabella, com a intenção de manter-se em posse da propriedade roubada. Sem dar spoilers, o resto da história, que inclui assassinatos, fantasmas e reviravoltas, fica como sugestão de leitura futura.
Quando William Marshall publica, na véspera de natal, o romance Otranto, ele diz ao leitor, em prefácio, que o texto traduzido por ele (de autoria de um padre italiano, Onuphrio Muralto) havia sido encontrado na biblioteca antiga de uma família católica no norte da Inglaterra e indica que ele “havia sido escrito em Nápoles, no estilo gótico, no ano de 1529” e que os acontecimentos representados ali são “aqueles conforme se acreditava nas eras mais sombrias do cristianismo; mas a conduta da linguagem não tem o sabor da barbárie” (Marshall, 1987 [1764], p. 59). Nota ainda que, apesar dos eventos sobrenaturais, nele “o leitor não encontrará nada indigno de leitura”, de modo que deveriam, portanto, “permitir a possibilidade de os fatos e agentes se comportarem como pessoas reais fariam em seu lugar” (Marshall, 1987 [1764], p. 60). Como tradutor, ele pede licença para os acontecimentos extraordinários e para os personagens da narrativa, pois, conhecendo o seu público, sabia que isso poderia acarretar restrições. Marshall ainda avança a verdade de que os acontecimentos de Otranto lhe soam reais em virtude das descrições muito específicas de lugares e espaços. Pede, enfim, que um historiador interessado investigue o caso para que o romance, talvez, seja mais valorizado.
O que faz Walpole abandonar a máscara de Marshall e da pseudotradução do romance e introduzi-lo, em nova edição, com um subtítulo (The Castle of Otranto: A Gothic Story) é a boa recepção do público leitor. Para Gideon Toury, pesquisador de pseudotradução, esse tipo de texto revela muito sobre a intenção do autor: quer dizer, esconder-se por trás de uma “tradução” é uma maneira eficaz de proteger o autor ao mesmo tempo em que se goza da liberdade de usar um maquinário (neste caso, o gótico) que em determinado período seria rechaçado imediatamente. Essa prática é uma estratégia “conveniente e relativamente segura de romper com padrões sancionados e introduzir novidades em uma cultura e não apenas no âmbito da literatura” (Toury, 2012, p. 48). Reintroduzindo no sistema literário inglês um tropos narrativo de mistérios, segredos, assassinatos, fantasmas e traições, Walpole consolida ali um leque de recursos muito comuns no romance gótico. Até mesmo a escolha de adicionar o subtítulo “Gothic Story” ao romance, que por si só é paradoxal (guardaremos esse ponto de análise para o futuro!), revela uma intenção não somente estética mas política de resgatar um imaginário e identidade nacional medular britânica.
Em prefácio à segunda edição do romance, Walpole assume a sua autoria. De acordo com ele, a intenção primeira em disfarçá-la se deu em virtude da “desconfiança de suas próprias habilidades e da novidade da tentativa” e, como autor, estava “determinado a deixá-lo [o texto] perecer na obscuridade se reprovado” (Walpole, 1987 [1765], p. 62). É, portanto, misturando “as duas formas de romance, o antigo e o novo” em uma tentativa de agregar ao primeiro, no qual “tudo era imaginação e probabilidade”, aquilo que considerava valoroso no segundo, no qual a “natureza sempre tende a ser, e às vezes tem sido, copiada” (1987 [1765], p. 62), que Walpole cria o romance gótico. Para a crítica, sendo Otranto uma criação de uma mente moderna, a “indulgência que concedemos às fraquezas de uma suposta antiguidade [não poderia ser estendida] à singularidade de um falso gosto em um período educado” (Monthly Review, 1987b [1765], p. 72). O que não impediu (e ainda não impede) a popularidade do romance gótico na época e a sua sucessão de herdeiros literários.
Você sabia dessa história ao redor da publicação de O Castelo de Otranto?
Outras obras de Walpole:
Anecdotes of Painting in England (1762), Historical Doubts on the Life and Reign of King Richard III (1768), Miscellaneous Antiquities: or A Collection of Curious Papers (1772) e o romance gótico The Mysterious Mother (1781).
Referências:
MARSHALL, William. Preface. In: SABOR, Peter (org.). Horace Walpole: the critical heritage. Londres: Routledge, 1987, p. 59-62.
MONTHLY REVIEW. Reviews, n. xxxii, p. 97-9, fev. 1765. In: SABOR, Peter (org.). Horace Walpole: the critical heritage. Londres: Routledge, 1987a, p. 70-72.
MONTHLY REVIEW. Reviews, n. xxxii, p. 394, mai. 1765. In: SABOR, Peter (org.). Horace Walpole: the critical heritage. Londres: Routledge, 1987b, p. 70-72.
TOURY, Giden. Pseudotranslations and their significance. In: TOURY, Gideon. Descriptive Translation Studies. Filadélfia e Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 2012, p. 47-59.
WALPOLE, Horace. Preface. In: SABOR, Peter (org.). Horace Walpole: the critical heritage. Londres: Routledge, 1987, p. 62-64.
Publicado por
Paula Pope Ramos é doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista CAPES. Sua pesquisa se debruça sobre a figuração da mulher vingativa na poética gótica do século XIX inglês, perpassando a ligação entre mulher e monstro, monstruosidade e gênero. No mestrado (UERJ, 2021), pesquisou a dessexualização da personagem Victoria di Loredani no romance gótico Zofloya, or the Moor (Charlotte Dacre, 1806). É licenciada em Letras/Inglês (UFRRJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2022-2023). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, com especial interesse na poética gótica e suas reflexões sobre gênero, corpo feminino, monstrousidade e sexualidade.