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Dia de folga em KyotoLeitura em 9 minutos

Minha formação de leitor deve tanto aos livros de bolso das Edições de Ouro, à Série Vaga-Lume da Editora Ática, às estantes de meus pais e à coleção completa de Jorge Amado de minha madrinha quanto às letras impressas, copiadas ou escutadas das canções que flutuavam do rádio e dos vinis naquela galáxia distante dos anos 1970 do século passado.

Essa relação com as canções perdura até hoje, e espero que siga ‘até onde essa estrada do tempo vai dar do tempo vai dar do tempo vai dar menina do tempo vai’ (Gil, 1971). As canções que os artistas daquela e desta época fazem pra mim (Carlos e Carlos, 1968) são um dos pontos de contato e conversa com as gerações mais novas, filha, sobrinhos, amigos.

Assim, eu que ‘sou um homem comum’, apesar do coração de poeta (Veloso, 1983), só poderia escrever este despretensioso texto falando de alguma canção, no caso,  “Kyoto”, de Phoebe Bridgers, Marshall Vore e Morgan Nagler, com letra da primeira, que a gravou em seu álbum Punisher, de 2020. Isso muito embora minha formação de ouvinte e preferências sejam predominantemente de música brasileira, The Beatles, Paul Simon, Clairo, Talking Heads, Cole Porter, Taylor Swift, Bob Dylan, The Smiths, Billie Eilish,  The Cure, Harry Styles e outros à parte.

Gostaria de expor aqui duas reflexões simples sobre a canção como forma literária, na esteira de oficinas que fiz nos anos 2000 com Francisco Bosco, Fred Martins e Marcelo Diniz, na leitura de alguma coisa de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik e outros textos esparsos. O primeiro é a relação entre o tema da letra e outros elementos da canção (melodia, harmonia, arranjo). O segundo é sobre a forma da canção em relação aos poemas e outras formas literárias. Fazendo um parêntese, alerto a possível leitora deste texto que ‘não sou candidato a nada’ (Bosco e Blanc, 1977), quero dizer, não tenho nenhuma formação acadêmica nem musical, ‘por favor não saquem a arma no salão, eu sou apenas o cantor’ (Belchior, 1976). Mas prossigo ancorado na fala de Luiz Tatit (2022): “[…] daquela história de professor que fica inseguro de como falar da parte musical se lida com literatura, então traz canções, mas não pode passar de um certo ponto. Na verdade, é um falso problema, porque o cancionista normalmente também não sabe música; é muito raro o cancionista que conhece música.”

Falando de letra e melodia em “Kyoto”, a canção fala sobre reflexões de uma cancionista em um dia de folga na turnê, andando pela cidade e pensando sobre “viver a vida de outra pessoa […] síndrome do impostor […] dissociação quando coisas ruins acontecem mas também quando coisas boas acontecem” (citado por Strauss, 2020, traduzi) e ainda sobre a dificuldade e complexidade de um relacionamento pai/filha, inspirada na experiência pessoal da artista (Petrusich, 2020).

Na gravação do álbum Punisher a canção tem uma atmosfera vibrante que de certa forma contradiz a densidade das reflexões da letra, como acontece em canções do The Smiths, para dar apenas um exemplo. Aprendi nas oficinas citadas mais acima que a melodia muitas vezes determina o sentido da canção, a contrapelo do que a letra meramente impressa descreveria. Luiz Tatit (2002) analisa como exemplo “Detalhes” (Carlos e Carlos, 1971), cujo texto, extirpada a melodia, tem um tom rancoroso, ciumento, ressentido, quase ameaçador: “Não adianta nem tentar me esquecer, durante muito tempo em sua vida em vou viver […] e isto lhe trouxer saudades minhas, a culpa é sua […] um outro deve estar falando ao seu ouvido palavras de amor como eu falei, mas eu duvido que ele tenha tanto amor […] pensando ter amor nesse momento, desesperada você tenta até o fim.” Um discurso de ex inconformado. No entanto, a melodia, o arranjo e principalmente a entonação de quem canta evidenciam tratar-se de uma canção de amor, com a intenção de recuperar o amor perdido.

Em “Kyoto”, uma audição mais distraída pode apresentar a canção como otimista devido principalmente ao ritmo [1]. Porém, a letra revela angústias, causando um estranhamento em que o sentido final da canção é dado pela letra e não pela melodia, mas de qualquer forma “there it is again, that funny feeling” [2] (Burnham, 2021), para citar outra canção também gravada por Phoebe Bridgers. Acompanhando o estranhamento que a canção causou, os últimos versos ainda declaram: “Guess I lied, I’m a liar who lies cause I’m a liar.”[3]

O outro aspecto na verdade não se reduz à escuta de “Kyoto” (I’m a liar?), mas é uma reflexão bastante pessoal e nada embasada sobre a natureza das canções ou por outra, a um aspecto de sua natureza. As canções costumam ser comparadas ou aproximadas aos poemas de forma quase óbvia, ainda que a questão “Letra de Música é Poesia?” (Bosco, 2007) possa ter muitas respostas. De qualquer forma é incontestável a relação entre essas duas formas literárias: “Defendo que os estudos da palavra cantada estimulam e desenvolvem a capacidade de escutar e pensar analogicamente porque envolvem: a compartimentação possível dos elementos da canção (letra, música e voz – interpretação), impossível no poema escrito; as formas múltiplas de versões de diferentes intérpretes, singularizando o leitor […] a incorporação de conceitos musicais ao repertório crítico na análise de poesia, tais como escala, tom, toque, andamento, ritmo.” (Davino, 2023)[4]

A partir daqui cito algumas coisas sem mencionar a fonte, confiando na minha memória afetiva e na tolerância de possíveis leitores. Milton Nascimento em entrevista diz ouvir a melodia da canção como um filme que vai passando em sua cabeça e indica um possível tema ou letra para a canção (note-se que embora grande parte de suas canções tenham letras de parceiros, Marcio Borges conta em Os Sonhos Não Envelhecem (1996) que Milton escolhia para que parceiro dava qual melodia para letrar, além de também escrever letra para músicas).

Da mesma forma, baseado na parca experiência de pôr letra em meia dúzia de melodias nas oficinas já citadas e em outras músicas por aí afora, também escuto a melodia ainda sem a letra como um filme que pede para que se explicite seu sentido, sua trama, sua narrativa, com ‘palavras exatas na voz de quem sabe cantar’ (Donato e Veloso, O Fundo, 1986). Nesse aspecto, uma canção pode parecer mais com um conto ou romance, uma forma literária em prosa, do que propriamente com um poema. “Existe narrativa na melodia e existe narrativa na letra se a gente explorar isso até as últimas consequências.” (Tatit, 2002)

Por fim, mas isso talvez já seja um terceiro aspecto (I’m a liar etc.), pensando na característica popular da canção, na possibilidade de múltiplas interpretações e na sua transmissão por meios orais poderíamos aproximar suas mensagens das narrativas orais que passaram por gerações. Ainda que o registro tecnológico impeça a dissolução da figura do autor, quem escuta também faz a canção. Como diz Virginia Woolf (1924) falando ao leitor sobre a composição/criação  de uma personagem:

Posso terminar ao me aventurar a lembrá-los dos deveres e responsabilidades que são suas como parceiros nesse negócio de escrever livros, como companheiros de vagão, como viajantes junto a sra. Brown? Pois ela é apenas visível para você que permanece em silêncio, tal como para nós que contam histórias sobre elas.

Cada um que lê uma canção cantada e a canta adiante torna-se coautor. Assim, em algum momento de seu ofício de cantautora, Phoebe Bridgers pode sonhar, como Dorival Caymmi dizia, em “compor uma Ciranda Cirandinha, que atravessasse gerações e cuja autoria se perdesse no tempo”.

Notas

[1] “O ritmo é a coisa mais importante na droga da vida. Muito do que você ouve não é o que você ouve – é o que você sente. É isso é uma questão de ritmo” (Keith Richards citado por Pareles, 2023, traduzi)

“Estilo é uma coisa muito simples; é tudo ritmo. Uma vez que você entende isso, não tem como usar as palavras erradas […] Veja, isso é muito profundo, o que o ritmo é e vai muito mais fundo que as palavras.” (Woolf, The Letters of Virginia Woolf, v. 3, citada por Maria Popova, traduzi.  Disponível em: https://www.themarginalian.org/2014/10/23/virginia-woolf-a-wave-in-the-mind Acesso em 15 set. 2023.

 

Agradeço a Jane Rodrigues Pereira Andrade, colega da comunidade Literatura Inglesa Brasil, pela indicação dos trechos.

 

[2] “olha aí, de novo, essa sensação esquisita”, em tradução bastante livre.

[3] “acho que menti, sou uma mentirosa que mente porque é uma mentirosa”, em tradução livre.

[4] Quanto a “múltiplas versões”, é interessante notar que em outra versão da própria Phoebe Bridgers  para Kyoto denominada Copycat Killer Version, o andamento da canção é mais lento e a música passa desde o início a impressão reflexiva e melancólica que a versão original oculta.

 

REFERÊNCIAS

BELCHIOR. Apenas um Rapaz Latino-americano. In: ______. Alucinação, 1976.

BORGES, Márcio. Os Sonhos Não Envelhecem: histórias do Clube da Esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

BOSCO, Francisco. Letra de Música é Poesia? In: ______. Banalogias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

BOSCO, João e BLANC, Aldir. Plataforma. In: BOSCO, João. Tiro de Misericórdia, 1977.

BRIDGERS, Phoebe; VORE, Marshall; NAGLER, Morgan. Kyoto. In: Punisher, 2020.

______. Kyoto: copycat killer version. In: BRIDGERS, Phoebe e MOOSE, Rob. Kyoto (single), 2020.

BURHAM, Bo. That Funny Feeling. In: BRIDGERS, Phoebe. That Funny Feeling (single), 2021.

CARLOS, Roberto e CARLOS, Erasmo. As Canções que Você Fez pra Mim. In: CARLOS, Roberto. O Inimitável, 1968.

______. Detalhes. In: CARLOS, Roberto. Roberto Carlos, 1971.

DAVINO, Leonardo. Do poema à canção: a vocoperformance. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2023.

DONATO, João e VELOSO, Caetano. O Fundo. In: PINHEIRO, Leila. Olho Nu, 1986.

GIL, Gilberto. Expresso 2222. In: ______. Gilberto Gil e Gal Costa: live in London, 1971.

PARELES, Jon. The Rolling Stones on Starting Up Again. The New York Times, 14 Sept. 2023. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/09/14/arts/music/rolling-stones-hackney-diamonds.html?smid=nytcore-ios-share&referringSource=articleShare Acesso em: 15 set. 2023.

PETRUSICH, Amanda. Phoebe Bridgers’s frank , anciões music. New Yorker, 25 May 2020. Disponível em: Phoebe Bridgers’s Frank, Anxious Musichttps://www.newyorker.com/magazine/2020/05/25/phoebe-bridgers-frank-anxious-music. Acesso em 15 set. 2023.

STRAUSS, Matthew. Phoebe Bridgers Announces New Album Punisher, Shares New Song “Kyoto”. Disponível em: https://pitchfork.com/news/phoebe-bridgers-announces-new-album-punisher-shares-new-song-kyoto-listen/?verso=true. Acesso em 15 set. 2023.

TATIT, Luiz. O Cancionista. 2. ed.  São Paulo: Edusp, 2002.

TATIT, Luiz e FISCHER, Luís Augusto. Forma e formação: uma conversa sobre a canção popular. Porto Alegre: UFGRS Editora, 2022.

VELOSO, Caetano. Peter Gast. In: ______. Uns, 1983.

WOOLF, Virginia. A personagem na ficção. 1924. Tradução Lucas Leite Borba. Material de apoio do curso A Arquitetura de Um Teto Todo Seu. 2023.

Publicado por

Luiz Henrique Pereira

Luiz Henrique Pereira é leitor. Niteroiense de 56 anos, acariocado há quase três décadas, fala em @cadaseuleitorlivro de livros no feed e de livros, canções, filmes e de seus cachorros nos stories. Publica uns poemas esparsos em @poetasparaque. É fã e participante da comunidade do Literatura Inglesa Brasil.

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