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Dalloway Day: Aspectos do narrar woolfiano em Mrs. DallowayLeitura em 10 minutos

Virginia Woolf lendo

“Como ela consegue fazer leitores se importarem com a vida de uma mulher rica, casada, cuja grande aventura é uma ida à uma florista?” (FERNALD, 2021, p. xiii)1, questiona Anne Fernald na introdução da Norton Critical Edition de Mrs. Dalloway. Movido a responder essa indagação, penso que o modo de narrar woolfiano seja o fator que atraia leitores a essa história.

Mrs. Dalloway situa-se em uma quarta-feira em meados de junho, quando Clarissa Dalloway, Septimus Smith e Peter Walsh2 saem pelas ruas de Londres, cada qual lidando com questões do passado que voltam a incomodá-los, se é que um dia deixaram de o fazer. A simplicidade do enredo esconde as tramas complexas que se desnovelam na narrativa, no encontro e desencontro dessas personagens na cena londrina. Inobstante, a voz narrativa de Mrs. Dalloway não nos guia, ou nos ensina sobre o que devemos pensar acerca do romance. Pelo contrário, ela adentra a subjetividade das personagens, ao passo que também as expõe.

Que verdade pode ser apreendida a partir de Mrs. Dalloway? Podemos recorrer a alguém como balança moral no romance? A tessitura alusiva do romance escancara mais perguntas do que respostas, e ao final talvez sejamos deixados com questionamentos parecidos com a pergunta de Anne Fernald: eu me importo com essas personagens? Eu deveria me importar?

A seguir, não pretendo derreter essas interrogações em pontos e vírgulas, mas expandir os códigos do romance a partir delas. Nesse espírito do Dalloway Day, espero que a breve explanação do narrar woolfiano possa convidá-los a reler Mrs. Dalloway, buscando novas questões. Caso seja sua primeira leitura, espero que o texto se apresente como uma chave para você, para essa e outras obras da autora.

Em um post do ano de 2021, no Literatura Inglesa3, a Professora Marcela Santos aborda a inadequação do termo “fluxo de consciência” para se referir à obra de Virginia Woolf. Destacando o argumento de David Bradshaw (2006)4, o post realça a importância de ler Virginia Woolf pensando suas nomenclaturas, e suas próprias teorias do romance. Categoricamente, tanto To the Lighthouse, romance abordado pelo pesquisador, quanto Mrs. Dalloway e Jacob’s Room, não são narrados em primeira pessoa, o que descaracteriza a premissa basilar do fluxo de consciência. Sobre as nomenclaturas que a própria Woolf fornece, Bradshaw (2006) observa que ela nomeia sua técnica de Oratio Oblique5 [discurso indireto] nos diários. Logo, limitá-la como aderente da técnica do fluxo de consciência ofusca sua constante busca por uma nova forma dentro do romance.

Em última análise, o ponto de vista é sempre o do narrador onisciente, mas o léxico e o tom mudam continuamente dependendo do personagem em foco, criando o efeito de um ponto de vista narrativo em constante mudança. (BRADSHAW, 2006, p. xli)6.

Corroborando o comentário de Bradshaw, Fernald (2021) investiga a primeira frase do romance, evidenciando como ela apresenta uma nova maneira de narrar. “Nessa única frase, então, nós já sabemos que estamos lendo uma história sobre uma mulher rica e casada lidando com seu dia em uma cidade moderna e que a história será contada de uma nova maneira.” (FERNALD, 2021, p. ix).

A “nova maneira” notada por Fernald (2021) já surge na primeira frase do romance, que não é nem um discurso direto, “Mrs. Dalloway said: ‘I’ll buy the Flowers myself’/ Mrs. Dalloway disse: ‘eu mesma vou comprar as flores’”, nem um discurso indireto, “Mrs. Dalloway said that she would buy the flowers herself/ Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”. A frase “Mrs. Dalloway said she would buy the Flowers herself”7 (WOOLF, 2021, p. 3) destaca um uso singular de técnicas já existentes, e criam o efeito, descrito por Bradshaw, da voz narrativa tingindo-se da subjetividade das personagens. Isso é evidente no seguinte excerto:

Por ter morado em Westminster – quantos anos agora? Mais de 20, – parece até no meio do trânsito, ou andando à noite, Clarissa estava certa, um silêncio particular, ou solenidade; uma pausa indescritível; um suspense (mas isso talvez fosse seu coração afetado, diziam, pela influenza) (WOOLF, 2021, p. 4).

Ao sair, animadamente, para comprar flores, Clarissa encontra-se no silêncio de uma cidade em furor. O movimento pendular entre a saúde, a excitação de viver, e as sequelas da doença – um lembrete da efemeridade da vida – torneiam a construção dessa personagem e afetam o retrato do espaço em que ela está. O romance é regido, temporalmente, pelas badaladas do Big Ben. Esse é o ritmo da passagem do tempo que aproxima Clarissa de sua festa, mas há também as badaladas das batidas do seu coração, o motor da vida, danificado pela doença.

Há, no entanto, uma outra comparação entre o ritmo da vida em Londres e os ritmos do coração no romance: “Era uma manhã esplêndida também. Como um pulso de um coração perfeito, a vida pulsava fortemente pelas ruas. Não havia perturbações – nem hesitações” (WOOLF, 2021, p. 40). Diferentemente de Clarissa Dalloway, o caminhar de Peter Walsh revela uma Londres ininterrupta, fluida, um coração perfeito, contrastante ao de Clarissa, e fluxos contínuos que se opõem aos suspenses dela.

A diferença na descrição de Londres, partindo de uma mesma metáfora, denota a adaptabilidade dessa voz narrativa. A ausência de uma primeira pessoa, e, portanto, de um fluxo de consciência, não nos permite estabelecer perspectivas fixas. Por exemplo, há um passado em comum entre algumas personagens, como Clarissa, Peter, e Sally – dos verões em Burton – que só entendemos por meio das memórias dessas personagens. Tal qual no romance, essas perspectivas por vezes colidem, por vezes se assomam, nunca se permitindo ratificar. Sobre esse processo de criação, Woolf afirma:

minha descoberta, como eu escavo belas cavernas atrás dos meus personagens; eu acho que isso dá exatamente o que eu quero; humanidade, humor, profundidade. A ideia de que as cavernas devem se conectar, & cada uma venha à luz do dia no momento presente. (WOOLF, 1978, p. 263)

Em Mrs Dalloway, a oposição de Clarissa Dalloway e Septimus Warren-Smith figuram essa conexão entre as experiências de personagens, que nunca se encontram efetivamente no romance. Um dos modos narrados dessa experiência em paralelo é como Clarissa e Septimus sentem a vida no seu extremo. Clarissa lida com frêmitos, mergulhos, pena, raiva, amor e medo, se opondo à aparente apatia de Septimus.

Durante a guerra, Septimus perdeu seu amigo, e “longe de demonstrar qualquer emoção ou reconhecer que ali era o fim de uma amizade, ele se parabenizou por sentir muito pouco e muito racionalmente” (WOOLF, 2021, p. 62). A ideia de “sentir pouco” e “muito racionalmente” seguiria o senso de proporção que o médico de Septimus tanto valoriza e é exatamente isso que o aflige no presente. Sua culpa é indizível e a falha da linguagem para traduzir seus pensamentos é representada no uso dos travessões, ao ser interpelado pelos seus médicos: “Eu – eu – ele balbuciou” (WOOLF, 2021, p. 70). Esses símbolos gráficos traduzem as perguntas inflando na sua mente: “Mas se ele confessasse? Se ele comunicasse? Eles o deixariam em paz então, seus torturadores?” (WOOLF, 2021, p. 70).

O encontro seguinte de Septimus com seus médicos, ou torturadores, como ele os nomeia, seria o último. Ao ouvir os passos de Dr. Holmes se aproximando, Septimus se atira da janela. É o único momento em que ele sente algo positivo em relação a vida, no romance, e a voz narrativa reitera: “Ele não queria morrer. A vida era boa. O sol era quente. Apenas seres humanos – o que eles queriam?” (WOOLF, 2021, p. 106). A civilização, com seu senso de proporção, é o último algoz de Septimus.

A caminho da festa de Mrs. Dalloway, Peter Walsh escuta uma ambulância soando; na arquitetura do romance, ela fora provavelmente acionada pela morte de Septimus. Ironicamente, a ambulância, sinalizando a morte do personagem, vítima da experiência da guerra, é para Walsh um símbolo dos triunfos da civilização. Essa disparidade no modo como um mesmo símbolo é interpretado nos volta ao argumento de que a Londres de Walsh é inteiramente distinta da de Clarissa e Septimus: ele não enxerga uma insalubridade, mas “a eficiência, a organização, o espírito comunal de Londres” (WOOLF, 2021, p. 107). Aqui observamos como o processo de conectar as cavernas das personagens revela-se em uma negação de uma verdade dominante dentro do romance. A voz narrativa não julga, ou perdoa as personagens; ela dá vazão às suas experiências, circundando-as ao contexto no qual vivem, assim, como aponta Maria Aparecida de Oliveira:

Virginia Woolf vai lentamente construindo uma sólida estrutura social da cidade de Londres, às vezes de forma direta, às vezes irônica, com alguns tons de piedade e terror. Esse desfile de civilização e cultura ao mesmo tempo agrada Clarissa e a aterroriza. À medida que uma pequena rachadura aparece nessa estrutura, uma nova ordem de realidade emerge e coloca toda essa estrutura em desequilíbrio. São as vozes dissonantes dessas personagens que não se adaptam ao discurso vigente, que criam esse subtexto que emerge das malhas do texto e nos força a questionar essa estrutura falida, nem um pouco sólida, que se esfacela aos nossos olhos. (OLIVEIRA, 2013, p. 192).

A pesquisadora ainda comenta que “o dia de Mrs. Dalloway não é um dia qualquer, mas representa um tempo simbólico e atemporal” (OLIVEIRA, 2013, p. 174). Simbólico pois reúne os retratos da individualidade e trata da história como uma metonímia, para deslegitimar um discurso hegemônico sobre a imagem da Inglaterra enquanto império.

Que Septimus se sinta perseguido pelo fantasma de Evans é um reflexo das memórias da guerra, enquanto o sótão de Clarissa é a presença espacial da memória do isolamento pela doença. Tanto a primeira guerra quanto a Influenza estão marcadas nos corpos e nas mentes dessas personagens. A linguagem histórica se costura à linguagem poética, denunciando que a Londres imperial, gloriosa aos olhos de Peter Walsh, está esfacelada entre suspenses e fantasmas que figuram nas experiências de Clarissa e Septimus.

O foco narrativo do romance dilui o discurso hegemônico em experiências coletivas trespassadas por sujeitos comuns, tornando atemporal a jornada de uma mulher indo comprar flores para sua festa. 98 anos após sua publicação, Mrs. Dalloway ainda segue provocando leitores, talvez pelo seu potencial sugestivo, atraindo aqueles que se desafiam a desbravá-lo, ou os que se fascinam e se suspendem junto a ele.

REFERÊNCIAS

BRADSHAW, David. Introduction. In: WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Oxford: Oxford University Press, 2006.

BRIGIDA, Marcela Santos. Virginia Woolf & o fluxo de consciência. Instagram: @literaturainglesa. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CKo1KV8DK1k/. Acesso em: 12 de junho de 2023.

FERNALD, Anne. Introduction. In: WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. London: W. W. Norton, 2021.

OLIVEIRA, Maria Aparecida de. A representação feminina na obra de Virginia Woolf: Um diálogo entre o projeto político e o estético. 2013. Tese (Doutorado) – Estudos Literários, Unesp, Araraquara, 2013.

WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. London: W. W. Norton, 2021.

WOOLF, Virginia. The Diary of Virginia Woolf. 1925-1930. Vol 3. London: Hogarth Press, 1980. Arquivo do Kindle.


[1] As traduções das referências em língua inglesa foram feitas por mim, salvo as quais utilizei traduções de outros pesquisadores.

[2] Eles não as únicas personagens do romance, mas são as que considerei para essa análise, dado que eles se apresentam com mais frequência  e profundidade que outras personagens.

[3] https://www.instagram.com/p/CKo1KV8DK1k/ <Acesso em 12 de junho de 2023>.

[4] Refiro-me à introdução do autor para a edição de 2006 da Oxford University Press.

[5] It’s all in Oratio obliquia. Not quite all; for I have a few direct sentences. / É tudo em Oratio oblique. Não tudo; pois eu tenho algumas frases diretas (WOOLF, 1926, n/p). Entrada de 5 de setembro do seu diário, enquanto ela produzia o romance To the Lighthouse.

[6] Tradução retirada do post do Literatura Inglesa no instagram.

[7] Na tradução, não há diferença entre o exemplo do discurso indireto e do utilizado por Woolf: “said she would” e “said that she would” traduzem-se da mesma maneira.

Publicado por

Mestre em Estudos Literários na UFPE

Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador com interesse em teorias do ensaio, com foco em Virginia Woolf, e estudos de canção, com foco nas letras de Taylor Swift. Membro do grupo de trabalho do Literatura Inglesa Brasil. Oferece cursos sobre literatura e canção na empresa Senhora Bennet. Membro do KEW - Kyklos de Estudos Woolfianos.

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