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Ian McEwan reacende debate sobre estigma da ficção científica8 min read

Recentemente, Ian McEwan declarou que seu novo romance sobre inteligência artificial não era uma obra de ficção científica, reabrindo um debate sobre o estigma em torno do gênero. Em um artigo publicado no The Guardian, Sarah Ditum discutiu possíveis razões por que a ficção científica mantém seu estatuto de outsider.


O romance mais recente de Ian McEwan, Machines Like Me, foi publicado oficialmente no dia 18 de abril. Esta é uma obra de ficção que trata de ciência, mais especificamente, de inteligência artificial. O romance se passa em uma realidade alternativa na qual “Alan Turing não se matou, mas inventou a internet, JFK não foi assassinado e a atuação de Margaret Thatcher como Primeira Ministra terminou com o começo da Guerra das Malvinas”.

“O futuro próximo do mundo real torna-se o presente do romance, dando a McEwan espaço para explorar prescientes e-ses”, Sarah Ditum comenta: “e se um robô pudesse pensar como um humano, ou a inteligência humana não conseguisse identificar a diferença entre si e a IA”?

No entanto, segundo Ian McEwan, Machines Like Me não se enquadra na categoria de ficção científica. “Poderia haver uma abertura de um espaço mental para os romancistas explorarem esse futuro, não em termos de viajar a 10 vezes a velocidade da luz em botas anti-gravidade, mas olhando realmente para os dilemas humanos.” A declaração do autor deu início a um debate entre leitores, escritores e profissionais do meio literário em geral. Para Ditum, “McEwan delineia um limite impermeável entre a ficção literária e a ficção científica, e coloca-se firmemente no lado respeitável da linha”.

O estigma do gênero

A jornalista aponta, e nós concordamos, que um tanto quanto absurdo que McEwan sugira que a ficção científica é incapaz de “abordar esses temas de forma interessante: história alternativa e consciência não-humana são temas estabelecidos pela ficção científica, amplamente explorados em obras definidoras do gênero, como O Homem do Castelo Alto e Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? de Philip K Dick.”

No entanto, parece que a ficcao científica mantém seu estatuto de outsider entre os gêneros literárias, carregando um estigma de não-seriedade que muitos autores não gostariam de carregar.  Este não é um fenômeno recente, Ditum nos lembra, citando uma entrevista de Vladimir Nabokov à BBC em 1968:

“Eu detesto ficção científica com suas mocinhas e assassinos, suspense e suspensórios”, ele disse.

Na época, o autor trabalhava em Ada, “uma longa saga sobre incesto ambientada em uma Terra paralela chamada Demonia”. Quando o livro foi publicado, os críticos tiveram o cuidado de “diferenciar Ada das ‘óperas espaciais inúteis’ às quais se assemelhava superficialmente”, reiterando a concepção da ficção científica como um gênero não-respeitável.

As origens da ficção científica

Para ampliar o alcance da discussão e se aprofundar em um estudo das origens da ficção científica, Sarah Ditum entrevistou Roger Luckhurst, editor de Science Fiction: A Literary History e professor de literatura moderna e contemporânea na Birkbeck, University of London. Para o pesquisador, “as atitudes de desdém em relação à ficção científica têm suas raízes no boom gótico dos séculos XVIII e XIX.” Para o pesquisador, um elemento importante foi a reação da elite literária da época à ascensão do gótico:

“Uma pessoa como Ann Radcliffe estava vendendo milhares e milhares de exemplares e recebendo enormes quantias em dinheiro. Consequentemente, os literatos disseram que era tudo horrível e um lixo, e eles estavam realmente irritados por não estarem ganhando tão bem”.

De Frankenstein a Frankissstein

Ditum nos lembra que, em 1818, Frankenstein de Mary Shelley “casou uma visão gótica com teorias médicas sobre o ‘galvanismo’, que postulava que a vida poderia ser criada fora do útero e, ao fazer isso, ela deu origem a um protótipo de ficção científica.” O termo, em si, só começaria a ser usado na década de 1920, no entanto, quando as revistas pulp “ajudaram a estratificar as convenções de gênero”:  

“Com um nome inspirado em seu tipo de papel barato, essas publicações do mercado de massa foram segmentadas em ‘romance’, ‘detetive’, ‘picante’, ‘horror’ e, claro, ficção científica. A revista de ficção científica Amazing Stories publicou Júlio Verne, HG Wells e John Wyndham, assim como autores agora mais associados a horror ou fantasia como HP Lovecraft e Edgar Allan Poe. O mercado pulp desapareceu em meados do século XX e a separação estrita dos gêneros, em certa medida, desapareceu com ele. Consequentemente, o mesmo aconteceu com o estigma ligado à ficção científica.”

A jornalista aponta que autores como Colson Whitehead começaram a ser reconhecidos. Whitehead ganhou o prêmio Arthur C. Clarke e o Pulitzer de ficção em 2017 por The Underground Railroad. No mesmo ano, O Poder, de Naomi Alderman ganhou o prêmio Baileys de ficção feminina. Já “Frankissstein, de Jeanette Winterson, que será publicado em breve, revisita o original de Shelley para explorar sexbots, IA e biotecnologia”.

Os sintomas do problema

Ditum cita um estudo de 2017 que revelou que “quando um texto incluía em seu vocabulário palavras como ‘airlock’ e ‘antigravidade’, os leitores relatavam menor empatia com os personagens”, um problema que Ursula K Le Guin já havia abordado em seu ensaio de 1976, ‘Science Fiction e Mrs Brown’.”

“Se a essência do romance é o personagem (sintetizado pela everywoman de Virginia Woolf, Mrs. Brown), questionou Le Guin, é possível, para o autor de ficção científica, escrever um romance? ‘Temos alguma esperança de capturar Mrs. Brown, ou estamos presos para sempre dentro de nossas grandes e brilhantes naves espaciais cruzando a galáxia?’ – ela perguntou.”

“Ou o problema foi que a psicologia romanesca convincente minou fatalmente a construção de mundo da ficção científica? ‘Será que a Mrs. Brown é, de algum modo, grande demais para a espaçonave? Que ela é, digamos assim, redonda demais para a nave – de modo que, quando ela entra, de alguma forma, tudo se reduz a uma engenhoca de lata?’ E enquanto na era pulp o título estabelecia a marca e autores podiam navegar entre os gêneros ao navegar pelos títulos, para autores contemporâneos, a sua marca é o seu nome. Se você se tornar conhecido como um ‘autor de ficção científica’, tudo o que fizer provavelmente será julgado sob essa luz. (Uma solução é o pseudônimo: Iain Banks adicionava um M entre seus nomes para sinalizar que estava trabalhando no modo espacial.)”

Subsequentemente, Ditum cita o escritor Michel Faber, “um autor que se move entre os registros realista e de ficção científica” que aponta como o público leitor ainda se surpreende com a qualidade da escrita de ficção científica por conta de suas expectativas de gênero:

“Eu sempre ouço as pessoas dizendo que ficaram surpresas com o quanto elas amaram e se emocionaram com O Livro das Coisas Estranhas ou Sob a Pele, porque elas ‘não gostam de ficção científica’ ou ‘normalmente não leriam um livro assim’. Sob a Pele foi discutido no programa Open Book da BBC Radio 4 recentemente e os três apresentadores tentaram ao máximo argumentar que não era realmente ficção científica porque foi muito bem escrito e teve uma caracterização forte e temas profundos. Por um lado, é ótimo ser apreciado, mas, por outro, dá pra ver o desrespeito institucionalizado pelo gênero e entender por que isso leva os escritores de ficção científica à loucura.”

A exclusão causada pelo estigma pode ser “desanimadora”, disse a escritora Becky Chambers, autora da trilogia Wayfarers. Ela explicou que, embora sinta orgulho do que faz, ela “sente medo que seu trabalho não seja levado a sério” Para ela, o fato de a ficção científica se tornar uma literatura de nicho é muito limitador: “Você não quer ficar apenas pregando para o coro. O ponto principal da ficção científica é fazer com que as pessoas vejam o mundo de forma diferente, e isso é mais eficaz se você alcança muitas pessoas.”

O outro lado da moeda

Sarah Ditum incluiu em seu artigo uma forma como escritores se apropriam do estigma da ficção científica e o subvertem a seu próprio favor. A escritora estadunidense Joanna Russ, por exemplo, contou que aprendeu na faculdade que “as mulheres não tinham a perspectiva universal para criar literatura”. Nabokov, já citado neste texto, foi um dos seus professores. Diante deste interdito, Russ encontrou na ficção popular um acesso de volta à literatura autoral: “Convencida de que eu não tinha experiência real da vida, já que a minha própria, obviamente, não era parte da grande literatura, eu decidi de forma consciente escrever sobre coisas as quais ninguém conhecia. Então escrevi realismo disfarçado de fantasia, isto é, ficção científica”.

Sarah Ditum encerra seu artigo retornando ao artigo de Le Guin, que chega à conclusão que há espaço para Mrs. Brown na ficção científica. Ela entende o gênero como uma “nova ferramenta, uma chave inglesa canhota, louca, proteana, que pode ser aplicada a qualquer função que o artesão tenha em mente”. No entanto, é importante que o escritor que dialoga com o gênero reconheça essa aliança para aproveitar a ferramenta plenamente.

Qual é a sua opinião sobre a polêmica em torno da ficção científica? Você gosta de livros desse gênero? Qual é o seu autor ou obra de FC favorita?

Publicado por

Marcela Santos Brigida
Professora na UERJ | Website

Marcela Santos Brigida é professora de literatura inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Doutora em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ, 2022), defendeu tese sobre a obra da escritora irlandesa contemporânea Anna Burns. No mestrado (UERJ, 2020), pesquisou a relação entre a poesia de Emily Dickinson e a canção. É bacharel em Letras com habilitação em língua inglesa e suas literaturas (UERJ, 2018). Atuou como editora geral da Revista Palimpsesto (2020-2021). É coordenadora do projeto de extensão Literatura Inglesa Brasil (UERJ). Tem experiência nas áreas de literaturas de língua inglesa, literatura comparada e estudos interartes, com especial interesse no romance de língua inglesa do século XIX e na relação entre música e poesia.

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